Entre Panelas e Sonhos: A Luta de Clara por Reconhecimento
— Clara, já viste o estado desta cozinha? — a voz de Rui ecoou pela casa, carregada de impaciência. Eu estava a tentar terminar um email para a candidatura ao curso de fotografia, mas as palavras dele cortaram-me o raciocínio como uma faca afiada.
Fechei os olhos por um segundo, sentindo o peso das panelas por lavar, dos brinquedos espalhados pelo chão e das expectativas que nunca pareciam ser minhas. “Será que ele alguma vez vai perceber que sou mais do que isto?”, pensei, enquanto me levantava da cadeira.
— Já vou tratar disso, Rui. Só estava a acabar uma coisa importante…
Ele bufou, cruzando os braços à porta da cozinha.
— Importante? Mais importante do que manter esta casa em condições? Olha para isto, Clara. Parece que vives noutro mundo.
Mordi o lábio para não responder. O meu mundo era feito de sonhos adiados e silêncios engolidos. Desde que deixei o emprego para cuidar dos nossos filhos, o Rui parecia ver-me apenas como a empregada da casa. E eu… eu sentia-me a desaparecer.
Naquela noite, depois de deitar a Leonor e o Tiago, sentei-me no sofá com o portátil no colo. O silêncio da casa era pesado, mas também era meu. Escrevi a carta de motivação para o curso, as mãos a tremerem. “Quero ser vista. Quero ser ouvida. Quero ser mais do que a mulher das limpezas”, escrevi, sem coragem de dizer aquilo em voz alta.
No dia seguinte, Rui chegou tarde do trabalho. Atirou a pasta para cima da mesa e olhou para mim com aquele ar cansado.
— O jantar está pronto?
— Está quase — respondi, tentando esconder o nervosismo.
Enquanto mexia o arroz, ouvi-o resmungar sobre o patrão, sobre o trânsito, sobre tudo menos sobre mim. Senti uma raiva surda crescer dentro do peito. Porque é que ninguém perguntava como tinha sido o meu dia? Porque é que ninguém queria saber dos meus sonhos?
Durante semanas, vivi neste limbo: entre as tarefas da casa e os pequenos momentos roubados para mim. Inscrevi-me no curso sem contar ao Rui. Tinha medo da reação dele, mas também sabia que se não fizesse nada agora, nunca mais teria coragem.
Na primeira aula, senti-me viva como há muito não sentia. A professora, Dona Amélia, era uma mulher forte, com rugas de quem já tinha chorado e rido muito na vida.
— O olhar de uma mulher é sempre diferente — disse ela. — Não deixem ninguém dizer-vos que não têm direito ao vosso próprio olhar.
Voltei para casa com um sorriso nos lábios e um brilho nos olhos. Mas esse brilho desvaneceu assim que entrei na cozinha e vi Rui à espera.
— Onde estiveste? — perguntou ele, desconfiado.
— Fui a uma aula…
— Aula? De quê?
— Fotografia. Inscrevi-me num curso.
O silêncio dele foi pior do que qualquer grito.
— E quem é que ficou com as crianças? — perguntou finalmente.
— A minha mãe veio cá buscá-los. Estavam felizes.
Ele abanou a cabeça.
— Não percebo esta tua mania agora. Achas que és artista? E quem é que vai tratar da casa?
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas respirei fundo.
— Eu não sou só a mulher da casa, Rui. Também tenho sonhos. Preciso disto para mim.
Ele virou-me costas e saiu da cozinha sem dizer mais nada.
Nos dias seguintes, mal falámos. O ambiente era gelado. A minha sogra ligou-me:
— Clara, ouvi dizer que andas metida em cursos… Não devias era estar mais preocupada com os teus filhos?
Senti-me sozinha como nunca. Até a Leonor me perguntou:
— Mãe, porque é que o pai está sempre zangado contigo?
Abracei-a com força.
— Às vezes os adultos zangam-se porque não sabem explicar o que sentem, filha.
No final do mês, apresentei o meu primeiro trabalho fotográfico na escola. Dona Amélia sorriu ao ver as minhas fotos: retratos dos meus filhos a brincar no parque, as mãos pequenas cheias de terra e alegria.
— Tens talento, Clara. Não deixes ninguém apagar isso.
Ganhei coragem e convidei Rui para ver a exposição dos alunos.
— Não sei se posso… — disse ele, evasivo.
— Era importante para mim — insisti.
No dia da exposição, vesti-me com um vestido azul que já não usava há anos. Senti-me bonita. Quando Rui entrou na sala, olhou à volta como se estivesse perdido.
Aproximei-me dele.
— Estas são as minhas fotos — disse-lhe baixinho.
Ele olhou para as imagens em silêncio. Depois fitou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.
— Não sabia que eras capaz disto…
Senti um nó na garganta.
— Sou capaz de muito mais do que tu imaginas, Rui.
Naquela noite, falámos como já não falávamos há anos. Contei-lhe dos meus sonhos antigos: ser fotógrafa, viajar pelo país a captar histórias de outras mulheres como eu. Ele ouviu-me em silêncio e depois pediu desculpa por nunca ter perguntado quem eu era para além da mãe dos nossos filhos ou da mulher da casa.
As coisas não mudaram de um dia para o outro. Ainda discutimos sobre tarefas domésticas e horários. Mas comecei a exigir respeito pelo meu tempo e pelos meus sonhos. A Leonor agora diz aos amigos: “A minha mãe tira fotografias lindas!” E o Tiago pede-me para lhe ensinar a usar a máquina fotográfica.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas numa casa cheia de amor e solidão ao mesmo tempo? Quantas vezes deixamos de ser nós próprias para sermos apenas aquilo que esperam de nós?
Se pudesse perguntar-vos alguma coisa seria: quantas Claras existem por aí? E quando é que decidimos ser vistas pelo nosso verdadeiro valor?