Entre Panelas e Silêncios: O Jantar Que Nunca Sacia

— Outra vez arroz seco, Mariana? — A voz do Rui cortou o silêncio da sala como uma faca. Eu estava ainda a pousar a travessa na mesa, as mãos a tremer ligeiramente, tentando não deixar transparecer o quanto aquela frase me magoava. Olhei para ele, esperando um sorriso, um gesto de compreensão. Mas só encontrei o mesmo olhar cansado, impaciente.

— Desculpa, tentei fazer como a tua mãe ensinou — murmurei, sentindo o rosto a arder de vergonha. O nosso filho, Tomás, olhou de mim para o pai, sem perceber muito bem o que se passava. Tinha apenas seis anos e já começava a perceber que os jantares em nossa casa eram diferentes dos almoços de domingo na casa da avó.

Na casa da minha sogra, Rui era outro homem. Sorria, elogiava cada prato, repetia vezes sem conta. Eu observava-o, sentada à mesa, com um nó na garganta. — Que maravilha, mãe! Este bacalhau está divinal! — dizia ele, enquanto eu me perguntava o que fazia de errado. Era o mesmo bacalhau à Brás que eu tentava replicar em casa, seguindo à risca a receita que ela me dera num papel já amarelado pelo tempo.

A primeira vez que reparei nisto foi há dois anos. Tínhamos acabado de nos mudar para o nosso apartamento em Almada. Eu queria tanto agradar-lhe, mostrar que sabia cuidar dele, que podia ser tão boa dona de casa quanto a mãe dele. Mas cada tentativa parecia falhar. O arroz nunca tinha o ponto certo, a carne ficava seca, o tempero era sempre “diferente”.

Uma noite, depois de mais uma crítica velada — “Talvez devesses usar menos sal” — fechei-me na casa de banho e chorei baixinho para não acordar o Tomás. Senti-me pequena, inútil. Lembrei-me da minha mãe, que sempre dizia: “O amor também se faz à mesa”. E eu ali, incapaz de alimentar o meu marido sem ouvir reparos.

Comecei a evitar os jantares em família. Sugeria encomendar comida ou sair para comer fora. Rui aceitava sem grande entusiasmo. Quando íamos à casa da mãe dele, tudo mudava. Ele ria-se alto, contava histórias do trabalho, elogiava até a sopa de legumes. A sogra sorria orgulhosa e lançava-me olhares de lado, como quem diz: “Vês como se faz?”

Um dia, não aguentei e perguntei-lhe:

— Rui, porque é que na casa da tua mãe comes tudo e aqui nunca está bom?

Ele encolheu os ombros.

— Não sei… lá sabe-me melhor. Talvez seja o hábito.

— Ou talvez seja porque é ela — atirei, sem conseguir esconder o ressentimento.

Ele ficou calado. O silêncio entre nós cresceu como uma parede invisível.

Comecei a duvidar de mim própria. Passei horas a ver vídeos de culinária portuguesa no YouTube, comprei livros de receitas da Filipa Gomes e do Chef Avillez. Experimentei pratos novos: arroz de pato, feijoada à transmontana, polvo à lagareiro. Nada parecia resultar.

A minha mãe percebeu que algo não estava bem. Um dia, enquanto tomávamos café na varanda dela em Setúbal, perguntou:

— O Rui anda diferente?

— Não sei… talvez seja eu — respondi, olhando para as mãos.

— Mariana, não deixes que te façam sentir menos do que és. Nem tudo se resolve com um prato bem feito.

Mas eu queria resolver. Queria sentir-me suficiente.

O Tomás começou a recusar-se a comer à mesa. Dizia que não tinha fome ou que queria comer no quarto. Um dia ouvi-o dizer à avó:

— A mãe e o pai estão sempre chateados ao jantar.

Senti um aperto no peito. O meu filho estava a sofrer por nossa causa.

Numa noite chuvosa de novembro, depois de mais um jantar tenso, Rui levantou-se da mesa e foi para a sala sem dizer uma palavra. Fiquei ali sentada, sozinha, a olhar para os pratos quase intactos. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim.

Peguei no telefone e liguei à minha sogra.

— Dona Teresa, posso perguntar-lhe uma coisa?

— Claro, Mariana.

— Como é que faz para o Rui gostar tanto da sua comida?

Ela riu-se.

— Oh filha, ele sempre foi esquisito. Mas aqui em casa nunca se atreveu a reclamar. Sabe como é… respeito pela mãe.

Fiquei sem palavras. Então era isso? Em minha casa ele sentia-se à vontade para criticar porque eu não era a mãe dele?

Naquela noite, esperei que ele adormecesse e fui para a sala. Sentei-me no sofá e olhei para as fotografias do nosso casamento na estante. Lembrei-me do Rui apaixonado, do homem que me fazia rir até às lágrimas. Onde é que nos tínhamos perdido?

No dia seguinte, decidi falar com ele.

— Rui, precisamos de conversar.

Ele olhou para mim com ar cansado.

— Sobre o quê?

— Sobre nós. Sobre esta distância. Sobre os jantares.

Ele suspirou.

— Mariana, não é só a comida… Eu sinto falta de casa. Da minha mãe, do cheiro da comida dela…

— E eu? Não faço parte da tua casa agora?

Ele ficou calado. Pela primeira vez vi lágrimas nos olhos dele.

— Desculpa… Não queria magoar-te. Só não sei como lidar com isto.

Abraçámo-nos ali mesmo, no meio da cozinha. Chorei no ombro dele e ele pediu desculpa vezes sem conta.

A partir desse dia, começámos a cozinhar juntos. O Tomás ajudava a pôr a mesa e inventávamos receitas novas aos sábados à noite. Não foi fácil. Houve dias em que voltei a chorar sozinha na casa de banho. Mas aos poucos fomos encontrando um novo equilíbrio.

Hoje sei que não era só sobre o arroz ou o bacalhau. Era sobre expectativas, saudades e inseguranças. Era sobre aprender a construir uma família à nossa maneira.

Às vezes ainda me pergunto: quantas mulheres se sentem assim? Quantos casais se perdem em silêncios à mesa? Será que basta amor para ultrapassar estas pequenas grandes guerras diárias?