Entre o Silêncio e o Perdão: O Meu Caminho de Volta à Minha Mãe

— Vais mesmo continuar sem falar com ela? — perguntou o Rui, com aquele tom entre preocupado e impaciente, enquanto eu fingia estar concentrada no chá a arrefecer nas minhas mãos.

A pergunta pairou no ar como uma nuvem carregada. Três meses. Três meses de silêncio, de mensagens não respondidas, de chamadas ignoradas. Três meses desde aquela discussão na cozinha da minha mãe, onde as palavras cortaram mais fundo do que qualquer faca.

— Não sei, Rui. Não sei se consigo — respondi, sentindo a garganta apertar. Ele suspirou, afastando a cadeira.

— Ela é tua mãe, Mariana. Não podes simplesmente apagar tudo.

Mas será que não posso? Será que não tenho esse direito? A minha cabeça rodava em círculos, revivendo aquela tarde fatídica. O cheiro do arroz de pato queimado, a minha mãe a criticar o meu trabalho — “Nunca estás em casa, Mariana! E a tua filha? Cresce sozinha!” — e eu a rebentar, finalmente a dizer tudo o que tinha guardado durante anos.

— Sempre foste assim, mãe! Nunca nada está bem! — gritei-lhe, com lágrimas nos olhos. Ela ficou imóvel, os olhos duros como pedra.

— Se não gostas, faz melhor. Ou então não voltes.

E eu não voltei.

Desde então, os dias passaram lentos. A minha filha Inês perguntava pela avó — “A avó está zangada comigo?” — e eu mentia, dizendo que era só uma fase. O Rui tentava ser mediador, mas eu via nos olhos dele o cansaço de quem já não sabe mais o que dizer.

No trabalho, fingia normalidade. Mas bastava alguém mencionar família para sentir o nó no estômago. As colegas falavam dos jantares de domingo, das mães que ajudam com os netos. Eu sorria e mudava de assunto.

À noite, deitada ao lado do Rui, sentia-me vazia. O silêncio entre mim e a minha mãe era como um muro frio no meio da casa. E no entanto… havia raiva. Raiva dela nunca ter reconhecido o meu esforço. Raiva de eu própria nunca ter tido coragem de lhe dizer que precisava dela.

Uma noite, depois de mais uma discussão com o Rui — “Isto não pode continuar assim, Mariana! A Inês sente falta da tua mãe!” — levantei-me e fui até à varanda. A cidade dormia lá fora, indiferente ao meu drama doméstico. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à minha mãe:

“Mãe, podemos falar?”

Apaguei. Escrevi outra:

“Tenho saudades.”

Apaguei também. No fim, não enviei nada.

Os dias seguintes foram um tormento. O Rui começou a evitar o assunto, mas eu via-o olhar para mim com aquela expressão de quem espera que eu faça alguma coisa. A Inês desenhou um retrato da família — eu, ela, o pai… e a avó num canto, sozinha.

Na semana seguinte, recebi uma mensagem da minha irmã Sofia:

“Vais mesmo deixar passar o aniversário da mãe em branco?”

O coração bateu mais forte. O aniversário da minha mãe sempre foi um ritual: almoço em família, bolo de laranja feito por mim e risos à volta da mesa. Agora… nem um telefonema.

Na véspera do aniversário dela, acordei cedo e fui correr. O vento frio cortava-me a cara, mas era melhor do que ficar em casa a remoer. Lembrei-me de quando era pequena e a minha mãe me levava ao parque ao domingo. Lembrei-me das vezes em que me segurou quando caí da bicicleta, das noites em que ficou acordada comigo quando tive febre.

Porque é que tudo isto se perdeu? Porque é que deixámos que o orgulho falasse mais alto?

Voltei para casa decidida. O Rui estava na cozinha com a Inês.

— Vou ver a minha mãe amanhã — disse-lhes.

O Rui sorriu aliviado. A Inês saltou da cadeira:

— Posso ir também?

Assenti com um nó na garganta.

No dia seguinte, comprei flores e um bolo na pastelaria do bairro. O caminho até à casa da minha mãe pareceu interminável. Quando toquei à campainha, as mãos tremiam-me.

A porta abriu-se devagar. A minha mãe estava mais magra, os cabelos brancos mais visíveis.

— Mariana…

Ficámos ali paradas uns segundos eternos. Depois ela afastou-se para me deixar entrar.

O cheiro familiar da casa encheu-me de saudades e tristeza. A Inês correu para abraçar a avó, que se ajoelhou para a receber nos braços.

Sentámo-nos à mesa em silêncio. A minha mãe olhou para mim com olhos cansados.

— Pensei que nunca mais vinhas — disse ela baixinho.

As lágrimas vieram sem aviso.

— Desculpa, mãe… Eu… Eu só queria que me visses. Que visses o quanto me esforço…

Ela pegou-me nas mãos com força.

— Eu vejo-te, Mariana. Sempre vi. Só não sei dizer as coisas como devia…

Chorámos as duas ali mesmo, enquanto a Inês desenhava corações num guardanapo.

O almoço foi estranho ao início, mas aos poucos as conversas voltaram. Falámos das pequenas coisas: do trabalho, da escola da Inês, das dores nas costas da minha mãe. Não resolvemos tudo naquele dia — longe disso — mas demos o primeiro passo.

Quando saímos, a minha mãe abraçou-me com força.

— Não deixes passar tanto tempo outra vez…

No carro, o Rui apertou-me a mão em silêncio.

Agora olho para trás e penso: quantas famílias se perdem por orgulho? Quantas palavras ficam por dizer até ser tarde demais? Será que vale mesmo a pena manter o silêncio quando o amor ainda existe?