Entre o Silêncio e o Grito: O Meu Nome é Leonor

— Leonor, não voltes tarde! — gritou a minha mãe da cozinha, a voz embargada pelo cansaço e pela raiva contida. Eu já estava com a mão na maçaneta da porta, mas hesitei. O cheiro a sopa de couve pairava no ar, misturado com o fumo do cigarro do meu pai, que resmungava baixinho na sala.

— Não te preocupes, mãe. Vou só à farmácia buscar os comprimidos da avó — respondi, tentando esconder o tremor na voz. Sabia que ela não acreditava em mim. Sabia que ela achava que eu ia encontrar-me com o Miguel, o rapaz da vila com quem ela não queria que eu me envolvesse. Mas naquele dia, nem Miguel nem ninguém: só eu e o peso do segredo que carregava no peito.

A rua estava deserta, as pedras húmidas de chuva recente. Caminhei depressa, sentindo o frio entranhar-se nos ossos. A farmácia era o único sítio iluminado àquela hora. Entrei e fui recebida pelo olhar cansado da Dona Teresa.

— Boa noite, Leonor. Estás pálida, menina. Está tudo bem? — perguntou ela, baixando a voz.

— Está… — hesitei — Está tudo como sempre.

Ela não insistiu. Entregou-me a caixa dos comprimidos e um folheto sobre exames médicos gratuitos no centro de saúde. Olhei para ele por um momento. O medo apertou-me o estômago.

Voltei para casa devagar, sentindo cada passo como uma sentença. O meu pai já dormia no sofá, a televisão a murmurar notícias sobre políticos e corrupção. A minha mãe estava sentada à mesa, a olhar para uma fotografia antiga: eu, ela e o meu irmão mais novo, o Diogo, antes de ele ter ido para França à procura de uma vida melhor.

— Senta-te — disse ela, sem me olhar nos olhos.

Sentei-me em silêncio. O relógio da parede marcava quase dez horas.

— Recebi uma chamada da escola hoje — começou ela, a voz fria como pedra. — Disseram que tens faltado às aulas.

O coração bateu-me descompassado. Tentei engolir em seco.

— Mãe, eu… — comecei, mas ela interrompeu-me.

— Não quero desculpas! Achas que não tenho problemas suficientes? O teu pai sem trabalho, a tua avó cada vez pior… E tu agora isto?

As lágrimas ameaçaram cair, mas forcei-me a ficar firme.

— Eu só preciso de tempo — murmurei.

Ela levantou-se de rompante, batendo com as mãos na mesa.

— Tempo? Tempo para quê? Para andares com esse rapaz? Para fugires das tuas responsabilidades?

Levantei-me também, sentindo finalmente a raiva subir à superfície.

— Não é isso! Tu nunca perguntas o que se passa comigo! Só sabes julgar!

O silêncio caiu pesado entre nós. A minha avó tossiu no quarto ao lado. A minha mãe olhou para mim como se me visse pela primeira vez.

— Então diz-me, Leonor. Diz-me o que se passa.

Olhei para as minhas mãos trémulas. O segredo queimava-me por dentro há semanas: aquele caroço estranho no pescoço, as tonturas constantes, o cansaço que não passava por mais que dormisse.

— Acho que estou doente — sussurrei finalmente.

A minha mãe ficou branca como a parede atrás dela.

— Doente? Mas… como assim?

Expliquei-lhe tudo: as dores, as faltas às aulas para ir ao centro de saúde sozinha, os exames marcados em segredo porque não queria preocupar ninguém. Vi nos olhos dela um medo antigo, o mesmo medo que tinha visto quando o meu irmão partiu para França sem garantias de voltar.

Naquela noite não dormimos. Ficámos sentadas à mesa até ao nascer do sol, a falar baixinho para não acordar o meu pai nem a avó. Pela primeira vez em anos, senti que era ouvida.

Os dias seguintes foram um turbilhão de consultas e exames. O médico do centro de saúde olhou-me com seriedade depois da ecografia.

— Leonor, precisamos de fazer mais exames. Pode ser algo simples… mas também pode ser algo mais grave.

A palavra “grave” ecoou na minha cabeça durante dias. A minha mãe tornou-se uma sombra silenciosa ao meu lado: fazia-me chá, acompanhava-me às consultas, mas raramente falava do assunto. O meu pai continuava alheio a tudo, perdido nos seus próprios fantasmas de desemprego e frustração.

Uma tarde, enquanto esperávamos pelo autocarro para ir ao hospital de Coimbra, vi o Miguel do outro lado da rua. Ele acenou-me timidamente e atravessou para falar comigo.

— Leonor… tens andado desaparecida — disse ele, os olhos cheios de preocupação sincera.

A minha mãe lançou-lhe um olhar fulminante, mas eu ignorei-a.

— Tenho estado ocupada — respondi apenas.

Ele hesitou antes de perguntar:

— Precisas de alguma coisa? Sabes que podes contar comigo…

Olhei para ele e percebi que tinha afastado todos à minha volta por medo e vergonha. Mas naquele momento só queria sentir-me normal outra vez: uma rapariga de 17 anos apaixonada por um rapaz da vila vizinha.

Sorri-lhe tristemente:

— Obrigada, Miguel. Talvez um dia te conte tudo.

O autocarro chegou e partimos para Coimbra em silêncio. No hospital, os corredores cheiravam a desinfetante e esperança quebrada. Vi crianças carecas a brincar na sala de espera e senti um nó na garganta: será que eu ia acabar assim?

O diagnóstico chegou numa manhã cinzenta: linfoma. O médico explicou tudo com palavras técnicas que mal ouvi; só fixei o olhar na mão da minha mãe apertando a minha até doer.

Começaram os tratamentos: quimioterapia, idas e vindas ao hospital, vómitos e noites sem dormir. O meu cabelo começou a cair em tufos; chorei sozinha na casa de banho enquanto via os fios castanhos escorrerem pelo ralo.

A aldeia inteira ficou a saber do meu estado em poucos dias — aqui os segredos não duram muito tempo. Algumas vizinhas vinham trazer bolos e rezas; outras apenas olhavam com pena quando passavam por mim na rua.

O meu pai finalmente percebeu a gravidade da situação quando me viu sem cabelo pela primeira vez. Sentou-se ao meu lado na sala e chorou baixinho, pedindo desculpa por nunca ter estado presente como devia.

O Diogo ligava todas as semanas de França; dizia que ia juntar dinheiro para vir visitar-me assim que pudesse. A minha mãe tornou-se mais carinhosa do que nunca: fazia questão de me lembrar todos os dias que eu era forte, mesmo quando eu própria duvidava disso.

O Miguel começou a aparecer mais vezes; trazia-me livros e histórias engraçadas para me distrair dos dias maus. Um dia trouxe-me um lenço azul para cobrir a cabeça:

— Ficas linda assim — disse ele, corando até às orelhas.

Sorri-lhe pela primeira vez em semanas.

Os meses passaram devagar; houve dias em que quis desistir de tudo. Mas havia sempre alguém ao meu lado: a minha mãe com o seu chá quente; o Miguel com as suas piadas; até o meu pai com os seus silêncios pesados mas presentes.

No final do verão, os médicos disseram-me que estava em remissão. Não chorei nem sorri: apenas respirei fundo e senti um alívio imenso invadir-me por dentro.

Hoje olho para trás e vejo tudo como se fosse um sonho mau do qual acordei mais forte. A minha família mudou: falamos mais uns com os outros; já não há tantos segredos nem silêncios dolorosos entre nós.

Às vezes pergunto-me: quantas Leonores existem por aí, presas entre o silêncio e o medo? Quantas histórias ficam por contar nas aldeias deste país? E vocês… já tiveram medo de dizer a verdade?