Entre o Silêncio e o Grito: A História de Uma Filha e Sua Mãe
— Outra vez sopa de legumes, Ana? Já não tens imaginação nenhuma para cozinhar? — A voz da minha mãe ecoa pela cozinha, carregada de impaciência e um certo desdém que me fere mais do que deveria.
Respiro fundo, conto até três. Não respondo. Não vale a pena. Desde que a minha mãe se reformou, há dois anos, parece que o tempo lhe pesa nos ombros e tudo à volta se tornou motivo de queixa. Eu sou o alvo preferido. Sou filha única, trinta e cinco anos, solteira, a viver com ela num apartamento antigo em Benfica. O meu pai morreu cedo, e sempre fomos só nós as duas. Mas nunca foi assim — nunca senti este cansaço, esta exaustão emocional.
— Se não gostas, podes fazer tu — murmuro, tentando manter a voz neutra.
Ela revira os olhos. — Eu já fiz comida toda a vida! Agora é tua vez de cuidar de mim. Para isso trabalhei tanto!
É sempre isto: a dívida invisível da maternidade. Sinto-me presa numa teia de obrigações que nunca pedi.
No trabalho, sou assistente administrativa numa clínica dentária. O dia inteiro a ouvir reclamações de pacientes nervosos, médicos apressados. Quando chego a casa, só queria silêncio. Mas Dona Lurdes está à minha espera com uma lista interminável de lamúrias: as dores nas costas, o preço do pão, o barulho dos vizinhos, a solidão dos dias longos.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o canal da televisão — ela quer ver novelas, eu preciso de um pouco de música para relaxar — fecho-me no quarto e deixo-me cair na cama. As lágrimas correm sem aviso. Sinto-me egoísta por desejar distância da minha própria mãe. Mas também sinto raiva por ela não perceber o quanto me magoa.
No dia seguinte, ao pequeno-almoço, ela começa:
— Sabes quem encontrei ontem no supermercado? A Maria do 3º andar. O filho dela levou-a ao Algarve no fim-de-semana passado. Diz que foi maravilhoso! Mas tu nunca tens tempo para mim…
A culpa instala-se como uma pedra no estômago. Sei que devia fazer mais por ela. Mas como posso dar-lhe alegria se eu própria me sinto esgotada?
Tento conversar com ela:
— Mãe, porque não vais ao centro de dia? Podias conhecer pessoas novas…
Ela interrompe-me com um gesto brusco:
— Não preciso dessas coisas! Não sou velha ao ponto de ir para um lar!
Desisto. O silêncio entre nós cresce como uma parede invisível.
Os meses passam. O inverno chega e com ele as noites longas e frias. Um dia, chego a casa mais cedo e encontro-a sentada à janela, a olhar para a rua vazia. Os olhos dela estão vermelhos.
— Mãe? Está tudo bem?
Ela não responde logo. Depois diz, num fio de voz:
— Sinto-me tão sozinha, Ana…
Sento-me ao lado dela. Pela primeira vez em muito tempo, vejo-a frágil, pequena. Não é só rabugice — é medo do vazio, do tempo que sobra.
— Eu também me sinto sozinha às vezes — confesso.
Ela olha para mim surpresa. Acho que nunca lhe disse isto antes.
— Achas que ainda há tempo para sermos felizes? — pergunta-me.
Não sei responder.
Na semana seguinte, inscrevo-a numa aula de hidroginástica no ginásio do bairro. No início resmunga muito — “não quero andar metida em água fria com velhas” — mas acabo por convencê-la a experimentar.
Ao fim de um mês, noto pequenas mudanças: ela chega a casa mais animada, fala das “amigas da piscina”, até ri das piadas da professora. As queixas diminuem um pouco.
Mas nem tudo é fácil. Há dias em que volta ao mesmo registo: “A tua vida é fácil porque não tens filhos nem marido”, “Nunca fazes nada direito”, “Se eu não estivesse aqui, nem sabias cuidar de ti”.
Numa dessas noites, perco a paciência:
— Mãe, chega! Não aguento mais ouvir só reclamações! Eu também tenho problemas!
Ela cala-se. Fica magoada. Passamos dois dias sem nos falar.
No terceiro dia, bate à porta do meu quarto:
— Ana… desculpa. Às vezes sinto-me tão inútil… Não sei o que fazer com tanto tempo livre.
Abraço-a. Choramos as duas.
A partir daí tento envolver-me mais na vida dela sem me anular: vamos juntas ao mercado ao sábado; ao domingo vejo uma novela com ela; às vezes jantamos fora — mesmo que seja só uma bifana na tasca da esquina.
Mas também imponho limites: tenho as minhas noites para sair com amigos ou simplesmente estar sozinha no quarto a ler ou ouvir música.
A relação melhora devagarinho. Há dias bons e dias maus. Aprendo que não posso carregar sozinha o peso da solidão dela — mas posso ajudá-la a encontrar novos caminhos.
Hoje escrevo esta história porque sei que não sou a única filha ou filho nesta situação. Quantos de nós vivem entre o amor e o ressentimento? Entre o dever e o desejo de liberdade?
Às vezes pergunto-me: será possível cuidar dos nossos pais sem perdermos quem somos? Ou será este o preço inevitável do amor?
E vocês? Como lidam com as vossas mães e pais quando tudo parece demasiado pesado?