Entre o Silêncio e o Grito: A História de Inês do Bairro Social

— Inês, cala-te! Não sabes nada da vida! — O grito do meu pai ecoou pela cozinha, fazendo estremecer os copos na prateleira. Eu tinha apenas doze anos, mas já sabia que discutir com ele era como tentar apagar um incêndio com gasolina. A minha mãe, Maria do Céu, olhava para o chão, os olhos vermelhos de tanto chorar, as mãos trémulas a segurar o pano da loiça. O cheiro a vinho barato misturava-se com o aroma do arroz queimado.

Lembro-me de pensar: “Será que algum dia vou conseguir sair daqui?” O bairro social onde vivíamos em Almada era um labirinto de prédios cinzentos, onde as vozes se misturavam com o som das sirenes e das portas a bater. Cresci a ouvir discussões atrás das paredes finas, a ver mães a puxar filhos pela mão, a fugir dos olhares dos vizinhos que sabiam demasiado sobre nós.

O meu pai, António, era um homem grande, de mãos ásperas e olhar perdido. Trabalhava nas obras quando conseguia, mas o dinheiro mal chegava para pagar as contas. Quando bebia — e era quase todos os dias — tornava-se outro homem: agressivo, imprevisível. Lembro-me de uma noite em que atirou o prato contra a parede porque a sopa estava fria. A minha mãe só disse: “Deixa estar, António”, e foi buscar a vassoura.

Eu queria gritar, queria fugir. Mas ficava ali, sentada à mesa, a engolir as lágrimas junto com o pão seco. O meu irmão mais novo, Rui, escondia-se debaixo da cama sempre que ouvia os passos pesados do nosso pai no corredor. Eu tentava protegê-lo, mas como proteger alguém quando nem eu própria sabia como sobreviver?

Na escola, fingia que tudo estava bem. A professora Dona Teresa perguntava-me se tinha feito os trabalhos de casa e eu sorria, mesmo sabendo que tinha passado a noite a consolar o Rui ou a limpar os cacos de vidro da sala. Os colegas gozavam comigo por causa das roupas velhas e dos sapatos rotos. “Olha a Inês da favela!”, diziam. Eu mordia o lábio até sangrar para não chorar.

Havia dias em que sonhava com outra vida. Imaginava-me numa casa luminosa, com uma família que se sentava à mesa sem medo. Mas depois chegava a casa e encontrava a minha mãe sentada no escuro, os olhos perdidos na janela. “Mãe, porque não vais embora?”, perguntei-lhe uma vez. Ela respondeu baixinho: “Porque não tenho para onde ir, filha.”

O tempo foi passando e eu fui aprendendo a sobreviver. Arranjei um trabalho num café aos fins de semana para ajudar em casa. O patrão, Sr. Joaquim, era duro mas justo. Dava-me restos de bolo para levar ao Rui e dizia: “Tens força nos olhos, miúda.” Essas palavras eram como um cobertor quente nas noites frias.

Mas nem tudo era escuridão. Havia momentos de luz — como quando conheci o Miguel na escola secundária. Ele era diferente dos outros rapazes: ouvia-me sem julgar, fazia-me rir quando tudo parecia perdido. Um dia levou-me ao miradouro da Boca do Vento e disse: “Inês, tu mereces mais do que isto.” Senti-me vista pela primeira vez.

No entanto, o meu pai não gostava do Miguel. “Esse rapaz só te vai meter ideias na cabeça”, resmungava ele. Uma noite chegou bêbado e tentou bater-me porque cheguei tarde. A minha mãe pôs-se à frente dele e levou um estalo. Eu gritei: “Basta!” Pela primeira vez enfrentei-o de verdade.

A partir desse dia, algo mudou em mim. Decidi que não ia deixar que o medo comandasse a minha vida. Comecei a guardar dinheiro às escondidas, planeando sair de casa assim que terminasse o secundário. O Miguel apoiava-me: “Quando quiseres fugir daqui, eu vou contigo.”

Mas fugir não era fácil. O Rui ainda era pequeno demais para deixar para trás e a minha mãe parecia cada vez mais frágil. Uma noite ouvi-a chorar no quarto e fui ter com ela. “Mãe, temos de sair daqui”, sussurrei-lhe. Ela abanou a cabeça: “O teu pai não nos deixa.”

Os meses passaram e o ambiente em casa tornou-se insuportável. O meu pai perdeu o emprego e começou a trazer amigos para beberem juntos na sala. O cheiro a álcool entranhou-se nas paredes. Uma noite houve uma discussão tão violenta que os vizinhos chamaram a polícia. Vi o meu pai algemado pela primeira vez — e senti alívio misturado com culpa.

Depois disso, as coisas mudaram devagarinho. A minha mãe arranjou trabalho numa limpeza e começou a sorrir mais vezes. O Rui já não se escondia tanto. Eu consegui entrar na faculdade com uma bolsa de estudo — fui a primeira da família.

No entanto, as feridas ficaram. Ainda hoje acordo sobressaltada com barulhos no corredor ou cheiro a vinho barato. O Miguel ficou ao meu lado durante anos, mas acabou por partir — disse que precisava de cuidar dele próprio antes de poder cuidar de mim.

Hoje sou assistente social num bairro parecido com aquele onde cresci. Todos os dias olho nos olhos das crianças que vivem entre o silêncio e o grito — como eu vivi — e tento mostrar-lhes que há sempre uma saída, mesmo quando tudo parece perdido.

Às vezes pergunto-me: será que alguma vez vou conseguir perdoar o meu pai? Será possível quebrar este ciclo de dor? E vocês — já sentiram que tiveram de escolher entre sobreviver e ser felizes?