Entre o Silêncio e o Choro: A Minha Vida Virou do Avesso
— Vais mesmo deixar-me agora? — perguntei, com a voz embargada, enquanto o Miguel enfiava as roupas à pressa no saco de viagem. O cheiro a café frio misturava-se com o perfume dele, ainda suspenso no ar do nosso pequeno T2 em Almada. Ele não me olhou nos olhos. Limitou-se a fechar o fecho do saco com força, como se quisesse calar tudo aquilo que eu sentia.
— Não consigo, Sofia. Não consigo ser pai agora. — As palavras dele caíram como pedras. Senti-me a afundar, como se o chão tivesse desaparecido debaixo dos meus pés.
O silêncio que se seguiu foi tão denso que quase me sufocou. Oiço ainda o som da porta a bater, ecoando pelo corredor vazio. Fiquei ali, de pé, com as mãos na barriga já saliente de cinco meses, sem saber se chorava ou gritava. O Miguel tinha sido tudo para mim nos últimos três anos: cúmplice, amante, amigo. E agora era só um vazio.
A primeira noite foi interminável. Sentei-me no sofá, abraçada a uma almofada, a olhar para as fotografias na parede: nós dois na praia da Costa da Caparica, sorrisos largos e despreocupados; nós no casamento da minha irmã, ele de gravata torta e eu com um vestido azul que já não me serve. Como é que tudo mudou tão depressa?
No dia seguinte, acordei com o telemóvel a vibrar. Era a minha mãe. Hesitei antes de atender.
— Sofia? Está tudo bem? — A voz dela vinha carregada de preocupação.
— O Miguel foi-se embora — consegui dizer, antes de começar a chorar.
Ouvi um suspiro do outro lado.
— Filha… Queres vir para cá uns dias? — perguntou ela, tentando disfarçar o nervosismo.
— Não sei… Preciso de pensar — respondi, sentindo-me envergonhada por precisar dela outra vez aos 29 anos.
Passei os dias seguintes num torpor. Ia trabalhar para o call center em Lisboa como um autómato, respondendo a clientes irritados enquanto tentava não pensar demasiado. À noite, voltava para casa e sentia o peso da solidão a crescer dentro de mim. Os vizinhos cruzavam-se comigo nas escadas e sorriam, sem saberem que eu estava prestes a desabar.
A barriga crescia e com ela os medos: como ia pagar as contas sozinha? Como ia criar um filho sem pai? E se não fosse capaz?
Uma tarde, depois de mais uma discussão com a minha chefe por causa das faltas para as consultas no hospital Garcia de Orta, sentei-me num banco do jardim e liguei à minha irmã, a Marta.
— Achas que fiz alguma coisa mal? — perguntei-lhe, quase sussurrando.
— Sofia, tu não tens culpa de nada. O Miguel é que foi cobarde. — A voz dela era firme, mas senti-lhe a tristeza.
— Mas ele dizia que me amava… Que queria esta família…
— Às vezes as pessoas dizem coisas que não conseguem cumprir. Mas tu és forte. Sempre foste — insistiu ela.
Lembrei-me então do dia em que contei ao Miguel que estava grávida. Estávamos sentados no sofá, ele com uma cerveja na mão e eu nervosa, a brincar com o fecho do casaco.
— Miguel… Estou grávida — disse-lhe, quase sem voz.
Ele ficou calado muito tempo. Depois sorriu e abraçou-me. “Vamos dar conta do recado”, disse ele na altura. Agora percebo que talvez estivesse só a tentar convencer-se disso.
Os meses passaram devagar. A barriga tornou-se impossível de esconder e os olhares dos colegas no trabalho mudaram: alguns cheios de pena, outros de julgamento. A minha chefe começou a pressionar-me para tirar licença mais cedo.
— Sofia, tens de pensar no bebé — dizia ela, mas eu sabia que só queria livrar-se do incómodo.
Em casa, as noites eram as piores. Ouvia os vizinhos do lado a discutir sobre dinheiro e filhos; ouvia risos vindos da rua; ouvia o meu próprio coração aos pulos sempre que pensava no futuro. Uma noite sonhei que o Miguel voltava e pedia desculpa. Acordei com lágrimas nos olhos e uma raiva surda dentro de mim.
A minha mãe insistia para eu ir viver com ela em Setúbal.
— Aqui tens apoio… Não tens de passar por isto sozinha — dizia ela sempre que falávamos.
Mas eu queria provar a mim mesma que conseguia aguentar. Que não precisava de voltar atrás na vida.
Quando chegou o dia do parto, fui sozinha para o hospital. O taxista olhou-me pelo espelho retrovisor e perguntou:
— Vai tudo bem?
Sorri-lhe sem convicção.
— Vai… Vai ter de ir.
O parto foi difícil. Horas intermináveis de dor e medo. Quando finalmente ouvi o choro do meu filho — chamei-lhe Tomás — senti uma onda de amor e desespero ao mesmo tempo. Olhei para ele e prometi-lhe baixinho:
— Vais ter tudo o que precisares… Mesmo que seja só eu contigo.
Os primeiros dias em casa foram um caos: noites sem dormir, fraldas por todo o lado, leite entornado na cozinha. A minha mãe veio ajudar durante uns dias e discutimos logo ao segundo dia porque ela queria fazer tudo à maneira dela.
— Mãe, deixa-me tentar! — gritei-lhe num acesso de cansaço.
Ela calou-se e saiu para a varanda. Mais tarde veio pedir desculpa e abraçou-me em silêncio.
O Miguel nunca apareceu. Mandou uma mensagem seca duas semanas depois:
“Espero que esteja tudo bem com o bebé.”
Apaguei-a sem responder.
Aos poucos fui aprendendo a ser mãe sozinha: aprendi a dar banho ao Tomás sem medo de o deixar escorregar; aprendi a distinguir os choros dele; aprendi a pedir ajuda quando já não aguentava mais.
No trabalho cortaram-me o contrato passado dois meses do parto. Disseram que era por “reestruturação”, mas eu sabia bem porquê. Fiquei noites inteiras acordada a fazer contas à vida: rendas, fraldas, leite… Liguei à Segurança Social tantas vezes que já conhecia as vozes todas do atendimento automático.
A Marta vinha visitar-me sempre que podia e trazia sacos com roupa usada dos filhos dela. Às vezes chorávamos juntas na cozinha enquanto Tomás dormia no berço improvisado na sala.
Uma tarde encontrei uma carta do Miguel na caixa do correio. Dizia que queria conhecer o filho “quando estivesse preparado”. Rasguei-a em pedaços antes de conseguir acabar de ler.
O tempo foi passando e fui criando uma rotina só nossa: passeios ao parque ao fim da tarde; histórias inventadas antes de dormir; risos partilhados entre fraldas e papas entornadas. Comecei a sentir orgulho em mim mesma pela primeira vez em muito tempo.
Agora olho para trás e vejo tudo o que perdi — mas também tudo o que ganhei. O Tomás sorri-me todas as manhãs como se eu fosse o mundo inteiro dele. E talvez seja mesmo isso: somos só nós dois contra tudo e todos.
Às vezes pergunto-me: será que algum dia vou conseguir confiar outra vez em alguém? Será que algum dia vou deixar de sentir este vazio quando penso no Miguel? Mas depois olho para o meu filho e percebo: talvez não precise de respostas agora… Talvez só precise de continuar a lutar por nós dois.
E vocês? Já passaram por algo assim? Como encontraram forças para recomeçar?