Entre o Silêncio e o Adeus: A Última Primavera de Manuel
— Pai, não podes estar a falar a sério! — gritou a Inês, com os olhos marejados de lágrimas e a voz trémula de incredulidade. Eu estava sentado à mesa da cozinha, as mãos entrelaçadas sobre o tampo de madeira gasto, sentindo o peso de cada palavra que precisava dizer. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o perfume das flores que a minha falecida mulher plantara no quintal, e por um momento desejei voltar atrás no tempo, antes de tudo isto.
— Inês, ouve-me, por favor. Não é uma loucura. A vida não acabou para mim só porque já passei dos sessenta. — Tentei sorrir, mas a minha voz soou mais cansada do que queria.
Ela abanou a cabeça, os cabelos castanhos caindo-lhe sobre o rosto. — E a mãe? Já te esqueceste dela? Passou só dois anos, pai! Dois anos!
O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. Senti-me pequeno, quase um intruso na minha própria casa. O relógio da parede marcava as horas com uma precisão cruel. Lembrei-me do funeral da Maria, do vazio que ficou na casa e em mim. Mas também me lembrei do primeiro sorriso da Teresa, daquela tarde em que a conheci no jardim da cidade, enquanto alimentava os pombos.
Teresa era diferente. Tinha 64 anos, olhos vivos e uma gargalhada que fazia esquecer as dores nas articulações e as noites frias. Falava-me de livros, de viagens que nunca fez, de sonhos que ainda guardava. Com ela, senti-me visto outra vez — não como o viúvo solitário ou o avô cansado, mas como homem.
— Não é uma questão de esquecer a tua mãe — disse, finalmente. — É uma questão de continuar a viver. A tua mãe queria isso para mim.
Inês levantou-se abruptamente, empurrando a cadeira para trás. — Não consigo aceitar isto. Não consigo! — E saiu, batendo com a porta.
Fiquei ali sentado, ouvindo o eco dos passos dela pela casa vazia. O meu neto, o pequeno Tomás, apareceu à porta da cozinha com um ar confuso.
— Avô, porque é que a mãe está triste?
Sorri-lhe com ternura e puxei-o para o colo. — Às vezes os adultos ficam tristes porque têm medo de perder quem amam. Mas tu sabes que eu nunca te vou deixar, não sabes?
Ele assentiu com a cabeça e abraçou-me com força.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Teresa vinha visitar-me às escondidas, quase como dois adolescentes envergonhados. Ríamos juntos das nossas próprias inseguranças: ela temia não ser aceite pela minha família; eu temia perder a única filha que me restava.
Certa noite, enquanto caminhávamos pelo cais de Gaia, Teresa parou e olhou-me nos olhos.
— Manuel, achas mesmo que vale a pena? Não quero ser motivo de discórdia entre ti e a tua filha.
Agarrei-lhe as mãos frias nas minhas.
— Teresa, eu passei metade da vida a fazer o que os outros esperavam de mim. Agora quero viver para mim. Se não for agora, quando será?
Ela sorriu e encostou-se ao meu ombro. O Douro refletia as luzes da cidade e senti uma paz que há muito não conhecia.
Mas a paz era frágil. No domingo seguinte, durante o almoço de família, Inês apareceu com o Tomás e um olhar decidido.
— Pai, precisamos conversar — disse ela assim que sentámos à mesa.
O almoço decorreu num silêncio tenso até que Inês explodiu:
— Não quero que o Tomás conviva com essa mulher! Não sabes nada sobre ela! E se só estiver contigo pelo dinheiro? Já pensaste nisso?
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Inês! A Teresa não é assim! Ela tem uma vida própria, nunca me pediu nada!
— Pois claro… — murmurou ela, desviando o olhar.
O Tomás começou a chorar baixinho. Levantei-me e fui até ele.
— Filho, desculpa…
Naquela noite não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto do quarto vazio onde ainda pairava o cheiro do perfume da Maria. Senti-me dividido entre dois amores: o da minha filha e o da mulher que me devolvera à vida.
No dia seguinte fui ter com Teresa ao jardim onde nos conhecemos.
— Teresa… talvez seja melhor acabarmos com isto. Não quero perder a minha filha.
Ela olhou para mim com tristeza mas sem surpresa.
— Eu compreendo, Manuel. Mas lembra-te: quem vive para agradar aos outros acaba por se perder de si mesmo.
Vi-a afastar-se devagar pelo caminho ladeado de árvores floridas. Senti um aperto no peito como se estivesse a perder tudo outra vez.
Durante semanas vivi num limbo: evitava Teresa por respeito à minha filha mas sentia-me cada vez mais vazio. O Tomás começou a perguntar menos por mim; Inês parecia aliviada mas distante.
Foi então que recebi um telefonema inesperado do hospital: Teresa tinha sofrido um AVC ligeiro. Corri para lá sem pensar em mais nada.
Quando cheguei ao quarto dela, vi-a pálida mas sorridente.
— Sabia que vinhas — disse ela baixinho.
Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.
— Desculpa… Desculpa por ter hesitado…
Ela apertou-me os dedos com força surpreendente.
— Ainda vamos ter muitas primaveras juntos, Manuel…
Dessa vez não hesitei: fiquei ao lado dela todos os dias até receber alta. Inês apareceu no hospital uma tarde e encontrou-nos juntos. Olhou para mim longamente antes de se sentar ao lado da cama.
— Pai… Eu só tenho medo de te perder também…
Abracei-a e senti as lágrimas dela molharem-me o ombro.
— Não me vais perder, filha. Só estou a tentar ser feliz outra vez.
No regresso a casa, Inês pegou na minha mão pela primeira vez em meses.
Hoje olho para trás e percebo que nunca é tarde para recomeçar — nem para amar nem para perdoar. A felicidade não é uma linha reta; é feita de curvas, tropeções e pequenos milagres diários.
Pergunto-me: quantos de nós deixamos de viver por medo do julgamento dos outros? E se amanhã fosse tarde demais para dizer sim à vida?