Entre o Silêncio e a Verdade: O Meu Caminho com o Cancro
— Não me digas que é verdade, mãe. — A voz da minha filha, Inês, tremia como se cada sílaba lhe queimasse a garganta.
Olhei para ela, para os olhos castanhos tão parecidos com os meus, e senti o peso do mundo a esmagar-me o peito. O silêncio da sala era quase ensurdecedor, interrompido apenas pelo tique-taque do velho relógio da cozinha. O meu marido, António, mantinha-se de braços cruzados, encostado à parede, como se quisesse afastar-se da realidade.
— É verdade, filha. — A minha voz saiu num sussurro rouco. — O médico confirmou hoje. Cancro da mama.
O rosto da Inês desfez-se em lágrimas. O António desviou o olhar para a janela, fingindo ver qualquer coisa lá fora. Eu queria gritar, partir pratos, fugir dali. Mas fiquei sentada, imóvel, sentindo o frio do banco de madeira a entranhar-se-me nos ossos.
Durante dias, vivi entre exames, consultas e salas de espera cheias de rostos assustados como o meu. O cheiro a desinfetante entranhou-se-me na pele. Cada vez que entrava no IPO do Porto, sentia-me menos pessoa e mais número. Mas o pior era regressar a casa e enfrentar o silêncio carregado de tudo o que não se dizia.
A Inês começou a evitar-me. Passava horas fechada no quarto, os fones nos ouvidos, a tentar abafar a dor. O António tornou-se ainda mais calado. Só a minha mãe, Dona Lurdes, vinha todos os dias com sopa quente e palavras de fé.
— Filha, Deus não te vai abandonar. — Dizia ela, apertando-me as mãos com força.
Mas eu sentia-me abandonada por tudo e por todos. Até por mim mesma.
Uma noite, depois de mais uma sessão de quimioterapia, sentei-me sozinha na varanda. O cabelo já começava a cair em tufos. Passei os dedos pela cabeça e chorei baixinho. Não pelo medo da morte, mas pelo medo de deixar de ser eu. Quem sou eu sem o meu cabelo? Sem os meus seios? Sem a minha força?
No dia seguinte, acordei com um grito vindo do quarto da Inês. Corri até lá e encontrei-a sentada na cama, agarrada ao telemóvel.
— Viste o que aquela tua prima escreveu no Facebook? — Atirou-me o telemóvel para as mãos.
Li as palavras frias: “A Maria está muito mal. Não sei se vai aguentar.”
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Como podia ela falar assim de mim? Como podia expor a minha dor sem sequer me perguntar como estava?
Desci as escadas a correr e liguei-lhe.
— Olha lá, Ana Paula, quem te deu autorização para falar da minha vida? — A minha voz tremia de fúria.
— Maria, eu só queria avisar a família… — tentou justificar-se.
— Avisar? Ou fazer-te importante à custa da minha desgraça?
Desliguei antes que as lágrimas me traíssem. Senti-me traída não só pela doença, mas também por quem devia proteger-me.
Os dias foram passando entre tratamentos e discussões familiares. O António começou a chegar mais tarde do trabalho. Uma noite, ouvi-o ao telefone na garagem:
— Não sei quanto mais aguento isto… Ela está diferente… Eu também preciso de respirar…
Senti-me invisível. Como se a doença tivesse apagado tudo o que eu era antes: mulher, mãe, companheira.
A Inês começou a sair mais com as amigas. Uma noite chegou tarde e bêbeda. Discutimos como nunca antes.
— Tu só pensas em ti! — gritou ela. — Achas que és a única a sofrer?
As palavras dela cortaram-me como facas. Mas percebi que ela também estava perdida no meio deste caos.
Numa manhã chuvosa de novembro, recebi uma carta do hospital: “Resultados dos exames: remissão parcial.” Senti um alívio misturado com medo. O pesadelo ainda não tinha acabado.
Decidi então enfrentar tudo de frente. Chamei o António e a Inês à sala.
— Chega de silêncios — disse-lhes. — Eu preciso de vocês. Mas também sei que vocês precisam de mim. Não quero ser só uma doente cá em casa. Quero ser vossa mãe, vossa mulher… Quero viver!
O António chorou pela primeira vez desde o diagnóstico. Abraçou-me como se tivesse medo de me partir. A Inês encostou-se ao meu ombro e chorámos juntas.
A partir desse dia, começámos a falar mais. A rir mais. A chorar juntos quando era preciso.
A doença ensinou-me que o silêncio pode ser mais cruel do que qualquer diagnóstico. E que a verdade dói, mas liberta.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos o medo calar-nos? Quantas vezes preferimos o silêncio à verdade? Talvez seja essa a maior batalha de todas.