Entre o Silêncio e a Coragem: Confissões de uma Mulher Portuguesa Depois do Casamento
— Teresa, não faças uma cena. — A voz da minha mãe ecoava na cozinha fria, misturando-se com o cheiro do café acabado de coar. — Pensa nos teus filhos, pensa no que vão dizer na aldeia.
Oiço as palavras dela como se fossem facas a rasgar-me por dentro. Oiço-as e calo-me, porque foi assim que me ensinaram: mulher que é mulher aguenta. Mas hoje, nesta noite em que a chuva bate com força nas janelas da casa dos meus pais, sinto que não aguento mais.
Tudo começou há três meses, numa terça-feira banal. O António chegou tarde, com o cheiro estranho de perfume barato na camisa. Fingi não reparar. No dia seguinte, encontrei uma mensagem no telemóvel dele: “Foi maravilhoso estar contigo ontem. Sinto a tua falta.” O nome era Ana Paula. Senti o chão fugir-me dos pés.
Durante dias, andei como um fantasma pela casa. Os meus filhos, o Miguel e a Sofia, perguntavam-me porque estava tão calada. O António fingia normalidade, mas eu via-lhe nos olhos o medo de ser descoberto. Até que um dia, não aguentei mais e confrontei-o.
— António, quem é a Ana Paula?
Ele ficou branco como a cal da parede. Gaguejou, tentou negar, mas eu tinha provas. Chorou. Pediu desculpa. Disse que era uma estupidez, que não significava nada. Mas para mim significava tudo.
Fui para casa dos meus pais, na mesma aldeia onde nasci e cresci. A minha mãe recebeu-me com um olhar duro.
— O casamento é para sempre, Teresa. Não vais estragar tudo por causa de uma aventura do António.
O meu pai nem olhou para mim durante dias. Só à noite, quando pensava que eu dormia, ouvia-o suspirar fundo na sala.
A minha irmã mais nova, a Joana, foi a única a perguntar-me o que eu queria fazer.
— Teresa, tu és feliz? Queres mesmo voltar para ele?
Não sabia responder. Sentia-me presa entre o medo de ficar sozinha e a vergonha de ser “a divorciada” da aldeia. Lembrei-me de como todos falavam da Dona Lurdes quando o marido a deixou: “Coitada, ficou marcada para sempre.” Eu não queria ser a próxima.
Os dias passaram lentos. A minha mãe insistia para eu voltar para casa.
— Os teus filhos precisam do pai. E tu precisas de um marido. Quem é que vai querer uma mulher da tua idade com dois filhos?
As palavras dela magoavam-me mais do que qualquer traição do António. Mas eu compreendia-a: ela própria viveu toda a vida ao lado de um homem frio e distante porque era isso que se esperava dela.
Uma noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me à mesa da cozinha com a Joana.
— Não sei o que fazer — confessei-lhe, com lágrimas nos olhos. — Sinto-me tão sozinha.
Ela pegou-me na mão.
— Teresa, tu tens direito à tua felicidade. Não vivas a vida dos outros.
Essas palavras ficaram a ecoar-me na cabeça durante dias. Comecei a pensar em tudo o que abdiquei desde que casei: deixei de estudar para cuidar dos filhos, deixei de sair com amigas porque “não ficava bem”, deixei até de sonhar porque me disseram que era tolice.
O António ligava todos os dias. Chorava ao telefone, prometia mudar. Dizia que me amava. Eu queria acreditar nele, queria voltar a sentir-me segura nos seus braços, mas algo dentro de mim tinha mudado.
Uma tarde, fui buscar os miúdos à escola e encontrei a Ana Paula à porta do café da vila. Olhou para mim sem vergonha nenhuma. Senti raiva e vergonha ao mesmo tempo. Quis gritar-lhe tudo o que me ia na alma, mas calei-me outra vez.
Nessa noite, sonhei com a minha avó Maria, uma mulher forte que criou sete filhos sozinha depois do avô morrer na guerra colonial. Lembrei-me das histórias dela sobre coragem e sacrifício. Perguntei-me se ela teria ficado calada numa situação como a minha.
Os meus filhos começaram a perguntar pelo pai.
— A mãe e o pai vão separar-se? — perguntou o Miguel, com os olhos cheios de medo.
Abracei-o com força.
— Não sei ainda, meu amor. Mas prometo que vou fazer tudo para sermos felizes.
Na escola começaram os boatos. A professora da Sofia chamou-me à parte:
— Sabe como é esta terra pequena… Se precisar de falar, estou aqui.
Senti vergonha e raiva por ser tema de conversa alheia. Mas também senti uma pequena centelha de orgulho: pela primeira vez na vida estava a lutar por mim.
O António apareceu em casa dos meus pais numa noite fria de novembro. Trazia flores e um ar derrotado.
— Teresa, perdoa-me. Eu amo-te. Não sei viver sem ti nem sem os miúdos.
A minha mãe chorou ao vê-lo ajoelhado à minha frente.
— Dá-lhe outra oportunidade — sussurrou ela.
Mas eu olhei para ele e vi um estranho. Vi todos os anos em que me anulei para manter as aparências. Vi todas as noites em que chorei sozinha na cama enquanto ele dormia ao meu lado.
Levantei-me devagar e disse-lhe:
— António, eu preciso de tempo para mim. Preciso de descobrir quem sou sem ti.
Ele saiu cabisbaixo. A minha mãe ficou furiosa comigo durante dias.
— Vais acabar sozinha! Vais arrepender-te!
Mas eu sentia uma paz estranha dentro de mim. Comecei a sair mais com a Joana, voltei a ler livros antigos que tinha guardados no sótão, inscrevi-me num curso noturno de costura na vila.
Os meses passaram e fui aprendendo a viver comigo mesma. Não foi fácil: houve noites em que chorei até adormecer, dias em que me senti invisível no meio da multidão da feira semanal.
Mas também houve momentos bons: o sorriso dos meus filhos quando lhes contei histórias antes de dormir; o orgulho da Joana quando lhe mostrei o primeiro vestido que costurei sozinha; o abraço silencioso do meu pai numa manhã em que me viu chorar na cozinha.
O António continuou a tentar aproximar-se durante algum tempo, mas acabou por aceitar a minha decisão. A Ana Paula desapareceu da vila pouco depois — dizem que foi trabalhar para Lisboa.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi… mas também tudo o que ganhei: ganhei respeito por mim mesma, ganhei coragem para dizer não, ganhei liberdade para sonhar outra vez.
Às vezes pergunto-me se fiz bem em escolher este caminho tão solitário e difícil. Mas depois olho para os meus filhos e vejo neles a esperança de uma vida diferente — uma vida onde ninguém tem de abdicar da sua felicidade por causa das aparências ou das tradições dos outros.
E vocês? Quantas vezes já calaram a vossa dor só para agradar aos outros? Será que vale mesmo a pena viver uma vida inteira em silêncio?