Entre o Silêncio e a Coragem: A História de Inês

— Inês, não podes continuar a fazer isto à tua mãe. O Rodrigo é um rapaz exemplar, trabalhador, de boa família. O que mais queres? — A voz do meu pai ecoava pela sala, carregada de frustração e cansaço.

Eu olhava para o chão, sentindo o coração a bater tão forte que quase me sufocava. A minha mãe chorava baixinho no sofá, as mãos apertadas no colo. O Rodrigo estava sentado ao meu lado, com aquele sorriso frio que só eu parecia ver. Por fora, era o genro perfeito; por dentro, era o meu carcereiro.

— Pai, eu não… eu não estou feliz — murmurei, a voz a tremer. — Não quero casar com ele.

O silêncio caiu como uma sentença. O Rodrigo pousou a mão na minha perna, apertando-a com força. Sorriu para os meus pais.

— Não se preocupem, eu trato disto — disse ele, como se eu fosse uma criança birrenta.

Naquela noite, depois de todos se recolherem, ouvi passos no corredor. A porta do meu quarto abriu-se devagar. Rodrigo entrou sem pedir licença.

— Achas bonito fazeres esta figura à frente dos teus pais? — sussurrou ele, os olhos duros. — Sabes bem que ninguém te vai ouvir. És só uma menina mimada que não sabe o que quer.

Fiquei calada. Já tinha aprendido que discutir só piorava tudo. Ele aproximou-se e agarrou-me pelo braço.

— Vais pedir desculpa amanhã. Vais dizer que estavas nervosa, que foi um mal-entendido. Percebeste?

Assenti, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Quando ele saiu, abracei-me à almofada e desejei desaparecer.

A minha vida era uma sucessão de dias iguais: acordar, fingir sorrisos, ouvir conselhos sobre como ser uma boa esposa. A minha mãe dizia-me sempre:

— Filha, tens de te adaptar. O casamento é assim mesmo. O teu pai também tem o seu feitio e eu aguentei.

Mas eu não queria aguentar. Queria viver.

O Rodrigo controlava tudo: as minhas mensagens, as minhas saídas, até as roupas que vestia. Quando tentei falar com a minha melhor amiga, a Sofia, ele leu as mensagens antes de eu as enviar.

— Não precisas dela para nada — disse-me ele. — Eu sou tudo o que precisas.

Comecei a definhar por dentro. Os meus sonhos de estudar fora, de viajar, de trabalhar numa livraria em Lisboa… tudo parecia tão distante como a infância feliz que já mal recordava.

Certa noite, ouvi os meus pais a discutir na cozinha.

— Ela não está bem — dizia a minha mãe. — Está pálida, não come, não sorri…

— São nervos — respondeu o meu pai. — Vai passar quando casar e tiver filhos. Precisa é de responsabilidades.

Responsabilidades… Era isso que esperavam de mim: casar, ter filhos, cuidar da casa e dos pais quando envelhecessem. O resto era egoísmo.

No dia do meu aniversário, Rodrigo organizou um jantar em casa dos meus pais. Trouxe flores caras e um presente embrulhado com fita dourada: um anel de noivado.

— Aceitas casar comigo? — perguntou ele diante de todos.

Senti os olhos da família inteira sobre mim: os meus tios orgulhosos, os primos invejosos, a minha avó com lágrimas nos olhos. Todos esperavam o sim.

Olhei para o Rodrigo e vi o aviso nos seus olhos: “Não te atrevas”.

Engoli em seco e murmurei:

— Sim…

A sala explodiu em aplausos. A minha mãe abraçou-me com força, sussurrando:

— Fizeste a escolha certa, filha.

Mas eu sabia que estava a morrer por dentro.

As semanas seguintes foram um tormento. Rodrigo tornou-se ainda mais possessivo. Começou a levantar a voz por tudo e por nada. Uma vez atirou o telemóvel contra a parede porque demorei a responder-lhe.

— És minha! — gritava ele. — Não te esqueças disso!

Tentei pedir ajuda à Sofia quando nos cruzámos na rua:

— Preciso de falar contigo… — sussurrei.

Ela olhou-me nos olhos e percebeu tudo sem eu precisar de explicar.

— Estou aqui para ti — disse ela baixinho.

Nessa noite, escrevi uma carta à minha mãe:

“Mãe,
Sei que vais ficar zangada comigo, mas preciso de ser honesta. Não sou feliz com o Rodrigo. Tenho medo dele. Por favor, acredita em mim. Não quero esta vida para mim. Preciso da tua ajuda para sair daqui. Amo-te muito.”

Deixei a carta na gaveta dela e fugi para casa da Sofia.

O telefone tocou durante horas naquela noite: chamadas do Rodrigo, do meu pai, da minha mãe. Não atendi nenhuma.

Na manhã seguinte, a minha mãe apareceu à porta da Sofia. Trazia os olhos inchados de chorar.

— Inês… filha… porque é que não me disseste nada antes? — perguntou ela, abraçando-me com força.

Chorei nos braços dela como há anos não chorava.

— Porque nunca me ouviram — respondi entre soluços. — Porque sempre disseram que eu tinha de aguentar.

Ela ficou calada durante muito tempo antes de dizer:

— Tens razão. Fomos injustos contigo… Só queria proteger-te do mundo lá fora e acabei por te prender aqui dentro.

O meu pai demorou mais tempo a aceitar. Durante semanas não me falou. Dizia à família que eu estava “confusa”, que era só uma fase.

Rodrigo tentou tudo para me convencer a voltar: flores à porta da Sofia, mensagens dramáticas, ameaças veladas.

Mas eu já não era a mesma Inês.

Procurei ajuda psicológica e comecei finalmente a estudar aquilo que sempre quis: Literatura Portuguesa na Universidade Nova de Lisboa. Arranjei um trabalho numa pequena livraria no Bairro Alto e aluguei um quarto minúsculo com vista para os telhados da cidade.

A relação com os meus pais foi-se reconstruindo devagarinho. A minha mãe tornou-se a minha maior aliada; o meu pai precisou de tempo para perceber que ser feliz não é egoísmo.

Hoje olho para trás e vejo aquela rapariga assustada com ternura e orgulho. Sei que muitas mulheres continuam presas às expectativas dos outros; sei que muitas ainda acreditam que têm de aguentar tudo em nome da família ou das aparências.

Mas também sei que há sempre uma saída — mesmo quando tudo parece perdido.

Pergunto-me muitas vezes: quantas Inês existirão ainda em silêncio nas casas deste país? Quantas terão coragem para dizer basta? E vocês… já ouviram verdadeiramente as mulheres à vossa volta?