Entre o Sangue e o Futuro: A Escolha Pela Minha Neta

— Mãe, não podes fazer isto comigo! — gritou o Rui, a voz embargada pela raiva e pelo álcool que já lhe conhecia tão bem. O cheiro a aguardente misturava-se com o suor frio da sua testa, e eu, sentada à mesa da cozinha, sentia o coração apertar como se alguém me apertasse o peito com as duas mãos.

Olhei para ele, para aquele homem que um dia foi o meu menino de olhos brilhantes, agora perdido num corpo cansado e numa alma ferida. A minha neta, a Mariana, dormia no quarto ao lado, alheia ao tumulto que se passava entre as paredes daquela casa antiga em Vila Nova de Gaia. O relógio marcava duas da manhã e eu sabia que aquela conversa não podia mais ser adiada.

— Rui, tu sabes porque é que estou a fazer isto — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo as lágrimas ameaçarem cair. — Já não posso confiar em ti. Não depois de tudo o que aconteceu.

Ele bateu com o punho na mesa, fazendo saltar as migalhas do pão seco do jantar. — Eu sou teu filho! Sou sangue do teu sangue! Como é que podes preferir a Mariana a mim?

O eco das suas palavras ficou a pairar no ar. Preferir? Não era uma questão de preferência. Era sobrevivência. Era amor transformado em medo. Era a soma de todas as noites em claro, das chamadas da polícia, das dívidas deixadas à porta, dos olhares julgadores dos vizinhos.

Lembro-me do dia em que tudo começou a desmoronar. O Rui tinha vinte anos quando conheceu a Andreia, uma rapariga doce mas com um passado difícil. Apaixonaram-se depressa demais, casaram-se na igreja da freguesia e eu, orgulhosa, dancei com ele no salão dos bombeiros. Mas logo vieram as discussões, os empregos perdidos, as noites fora de casa. E depois, o álcool. O cheiro tornou-se parte da mobília, impregnando-se nas cortinas e nas minhas roupas.

A Andreia aguentou enquanto pôde. Um dia desapareceu, deixando-me a Mariana nos braços. “Não posso mais”, disse-me ela num sussurro desesperado à porta de casa. “Cuida dela por mim.” E assim fiquei com uma criança de três anos para criar outra vez.

O Rui nunca perdoou a Andreia. Nem a mim. Dizia que eu era culpada por tudo — por não ter sido mais dura com ele, por não ter evitado que a Andreia partisse, por não lhe dar dinheiro quando ele pedia. Mas como podia eu dar-lhe mais? Já lhe tinha dado tudo: tempo, amor, paciência… até as minhas economias desapareceram nas suas promessas de mudança.

A Mariana cresceu entre livros e silêncios. Era uma menina doce, de olhos atentos e sorriso tímido. Sempre soube mais do que dizia. Às vezes encontrava-a sentada à janela do quarto, a olhar para o jardim onde o pai costumava brincar em pequeno. “A avó acha que o pai vai voltar para casa?”, perguntava-me baixinho. E eu mentia-lhe: “Vai, filha. Só precisa de tempo.” Mas no fundo sabia que cada regresso do Rui era mais uma tempestade.

Os anos passaram e a minha saúde começou a fraquejar. Um dia caí na rua e fui parar ao hospital. Foi aí que percebi que tinha de pensar no futuro da Mariana. O Rui apareceu no hospital com os olhos vermelhos e as mãos trémulas. “Precisas de alguma coisa?”, perguntou-me num tom frio. Eu só queria ouvir um “desculpa” ou um “amo-te”, mas nunca vieram.

Foi nesse inverno gelado que tomei a decisão: deixaria a casa à Mariana. Fui ao cartório sozinha, com as mãos a tremer de nervosismo e vergonha. A funcionária olhou-me nos olhos e perguntou: “Tem a certeza?” Tinha. Pela primeira vez em muitos anos, tinha mesmo.

Quando contei ao Rui, ele explodiu como nunca antes.

— Vais deixar-me na rua? Vais dar tudo à miúda? — gritava ele enquanto eu tentava explicar-lhe que não era uma questão de castigo, mas de proteção.

— Rui, tu sabes como és quando bebes… Já me roubaste dinheiro da carteira, já vendeste coisas cá de casa… Eu não posso arriscar perder tudo outra vez! A Mariana precisa de um lar seguro.

Ele chorou nesse dia. Chorou como nunca o tinha visto chorar desde criança. E eu chorei com ele, abraçados na cozinha fria enquanto lá fora chovia torrencialmente.

Os meses seguintes foram um inferno silencioso. O Rui deixou de me falar durante semanas. Passava pela rua sem olhar para mim. Os vizinhos começaram a cochichar: “A dona Lurdes deixou o filho por causa da neta…” Senti-me julgada por todos — menos pela Mariana.

Ela cresceu depressa demais. Aos dezasseis anos já sabia cozinhar para nós as duas e ajudar-me com os remédios. Um dia entrou no meu quarto com um envelope na mão.

— Avó… O pai deixou isto na caixa do correio.

Abri o envelope com mãos trémulas: uma carta escrita à pressa.

“Mãe,

Desculpa por tudo o que te fiz passar. Não sei se algum dia vou conseguir mudar, mas quero que saibas que te amo e que amo a Mariana. Não me odeies por ser fraco.

Rui”

Li aquelas palavras vezes sem conta naquela noite. Senti um misto de alívio e tristeza — alívio por finalmente ouvir um pedido de desculpa; tristeza por saber que talvez fosse tarde demais para nós.

A vida seguiu o seu curso lento e pesado. A Mariana terminou o secundário com distinção e entrou na universidade do Porto para estudar enfermagem. Orgulhei-me dela como nunca me tinha orgulhado de ninguém — nem mesmo do Rui nos seus melhores dias.

No último Natal antes de morrer, reuni os dois cá em casa. O Rui estava mais magro, os olhos fundos mas sóbrios pela primeira vez em anos.

— Mãe… — começou ele, hesitante — Obrigado por cuidares da Mariana quando eu não consegui.

Abracei-o com força e sussurrei-lhe ao ouvido: — Ainda és meu filho. Nunca deixaste de ser.

Agora escrevo estas palavras já velha e cansada, sentada na mesma cozinha onde tantas discussões ecoaram pelas paredes gastas pelo tempo. Sei que muitos vão julgar-me pela escolha que fiz — talvez até estejam certos em fazê-lo.

Mas pergunto-vos: quantas vezes pode uma mãe perdoar? Quantas vezes pode uma avó sacrificar-se pelo futuro dos seus?

E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre proteger quem ainda tem esperança ou tentar salvar quem já se perdeu tantas vezes?