Entre o Peso do Amor e o Peso da Vida: A Jornada de Pedro e Alice

— Pedro, se continuas assim, não vais ver a tua filha crescer. — A voz do Dr. António ecoou fria, cortando o silêncio da sala. Olhei para Alice, sentada ao meu lado, os olhos marejados de lágrimas. O consultório cheirava a desinfetante e medo.

Eu sempre fui grande. Cresci em Setúbal, filho de padeiro, neto de peixeira. O pão quente era o meu pequeno-almoço, almoço e jantar. Quando conheci a Alice, ela ria-se do meu apetite, mas depressa se juntou a mim nas incursões noturnas à pastelaria do bairro. Era o nosso ritual: uma bola de Berlim para ela, um palmier para mim, e litros de refrigerante para afogar as mágoas dos dias difíceis.

O problema é que os dias difíceis nunca acabavam. Quando nasceu a nossa filha, Matilde, prometi que ia mudar. Mas as noites sem dormir trouxeram mais ansiedade, e a comida era o único consolo. Em poucos anos, juntos, ganhámos mais de 150 quilos. As pessoas na rua olhavam-nos com pena ou desprezo. A minha mãe dizia baixinho: — Vocês vão matar-se assim.

Mas foi preciso ouvir o Dr. António para perceber que não era só conversa. — Pedro, tens 36 anos e já tens diabetes tipo 2, hipertensão e colesterol alto. Alice, tu também estás no limite. Se não mudarem agora, não há volta a dar.

Saímos do consultório em silêncio. No carro, Alice chorava baixinho. — Eu não quero morrer, Pedro. Não quero deixar a Matilde sozinha.

— Nem eu — respondi, sentindo-me mais pequeno do que nunca.

Os primeiros dias foram um inferno. Abrimos os armários e enchemos três sacos de lixo com bolachas, batatas fritas e chocolates. Alice tremia ao deitar fora as caixas de gelado. — Isto é ridículo — murmurava ela —, parece que estou a enterrar uma parte de mim.

As discussões começaram logo na primeira semana. — Não aguento comer só salada! — gritava eu, atirando um prato à parede.

— E eu não aguento ver-te desistir! — devolvia ela, os olhos vermelhos de raiva e medo.

A Matilde assistia a tudo em silêncio, agarrada ao boneco preferido. Uma noite, ouvi-a sussurrar: — Mamã vai morrer?

Foi aí que percebi que não era só sobre nós. Era sobre ela também.

Começámos a caminhar juntos todas as manhãs, mesmo quando chovia. No início, mal conseguíamos dar uma volta ao quarteirão sem ficar ofegantes. Os vizinhos olhavam-nos com surpresa: — Olha os gordos a tentar emagrecer! — ouvi alguém dizer num café.

Alice chorava quando chegávamos a casa. — Nunca vamos conseguir — dizia ela.

Mas eu agarrava-lhe na mão: — Um dia de cada vez.

As tentações eram constantes. O meu pai fazia questão de trazer pastéis de nata ao domingo: — Um docinho não faz mal! — insistia ele.

— Faz sim, pai! — respondi um dia, perdendo finalmente a paciência. Ele ficou ofendido durante semanas.

No trabalho, os colegas gozavam: — Então agora és fit? Vais correr a maratona?

Eu sorria por fora, mas por dentro sentia-me humilhado. Só Alice sabia o quanto me custava recusar um croquete ou um pão com chouriço nas festas da empresa.

A nossa relação também sofreu. A comida era o nosso refúgio comum; sem ela, parecia que não tínhamos nada em comum além do cansaço e das discussões sobre calorias.

— Sinto falta de nós — confessou Alice numa noite.

— Eu também… Mas se não mudarmos agora, não vai haver mais nós.

Começámos a cozinhar juntos receitas novas: sopa de legumes sem batata, peixe grelhado com limão, saladas coloridas. Descobrimos sabores que nunca tínhamos experimentado. Às vezes ríamos dos nossos desastres culinários: uma vez queimámos tanto o frango que tivemos de pedir desculpa ao vizinho pelo cheiro.

A balança começou finalmente a descer. Primeiro cinco quilos, depois dez… Em seis meses, juntos já tínhamos perdido cinquenta quilos. As roupas começaram a cair-nos do corpo; fomos à feira comprar calças novas.

Mas nem tudo era vitória. O corpo mudava mais depressa do que a cabeça. Às vezes olhava-me ao espelho e ainda via o homem gordo e cansado que sempre fui.

Alice teve uma recaída numa noite em que discutimos feio por causa das contas da casa. Encontrei-a na cozinha às duas da manhã com um pacote de bolachas na mão.

— Desculpa… Não consegui resistir…

Sentei-me ao lado dela no chão frio da cozinha.

— Não faz mal… Amanhã é outro dia.

Apoiamo-nos como podíamos, mas havia dias em que parecia impossível continuar. A família criticava-nos: — Estão obcecados! Isso não é vida!

Mas para nós era questão de sobrevivência.

Um ano depois daquela consulta fatídica, tínhamos perdido juntos mais de 150 quilos. O Dr. António mal nos reconheceu na sala de espera.

— Parabéns! Deram a volta à vossa vida!

Mas ninguém fala das cicatrizes invisíveis: as peles flácidas que nos envergonhavam na praia; as marcas das dietas falhadas; as noites em branco cheias de medo de voltar atrás.

A nossa relação mudou para sempre. Já não éramos só cúmplices na gula; éramos parceiros na luta diária pela vida.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantos casais sobrevivem quando o refúgio comum se transforma em prisão? Quantos conseguem reinventar-se juntos?

E vocês? Já sentiram que precisaram perder tudo para finalmente se encontrarem?