Entre o Perdão e o Orgulho: O Regresso de Rui

— Vais mesmo deixar-me agora, Rui? — perguntei, com a voz embargada, sentindo as contrações começarem a apertar o meu ventre. Ele não olhou para mim. Estava de costas, a enfiar as últimas roupas na mala. O som do fecho ecoou pelo quarto como um trovão. — Não consigo, Sofia. Não consigo viver esta mentira. Preciso de espaço, preciso de respirar. — As palavras dele cortaram-me mais do que qualquer dor física. Eu estava grávida de nove meses da nossa filha, Leonor, e o homem que eu amava estava a abandonar-me no momento em que mais precisava dele.

Lembro-me do cheiro a café queimado naquela manhã, do som abafado da chuva contra as janelas do nosso pequeno apartamento em Almada. Lembro-me de pensar: “Isto não pode estar a acontecer comigo.” Mas estava. Rui saiu sem olhar para trás, deixando-me sozinha com uma mala de maternidade e um coração despedaçado.

Os dias seguintes foram um nevoeiro de dor e solidão. A minha mãe veio de Setúbal para me ajudar, mas eu sentia-me vazia. Quando Leonor nasceu, olhei para ela e prometi-lhe que nunca iria deixá-la sentir-se sozinha neste mundo. Mas todos os dias me perguntava: “Como é que ele pôde? Como é que alguém vira costas à própria filha?”

Os anos passaram devagar. Voltei ao trabalho como professora primária, aprendi a viver com menos, a contar cada cêntimo, a sorrir para Leonor mesmo quando só me apetecia chorar. A minha mãe dizia-me: — Tens de ser forte por ela, Sofia. — Mas havia noites em que me encolhia na cama e deixava as lágrimas correrem em silêncio.

Rui não deu notícias durante três anos. Nem uma mensagem no aniversário da filha, nem um postal no Natal. Nada. Até ao dia em que apareceu à porta de casa, num sábado à tarde, com o cabelo mais curto e os olhos cansados.

— Sofia… — disse ele, hesitante. — Posso entrar?

Fiquei paralisada. Leonor brincava na sala com os legos, alheia à tempestade que se formava à porta. — O que queres aqui? — perguntei, tentando manter a voz firme.

— Quero ver a minha filha. Quero falar contigo. Sei que errei, mas… preciso de tentar consertar as coisas.

Fechei os olhos por um segundo. O cheiro dele misturava-se com o aroma do arroz doce que tinha acabado de fazer para o lanche da Leonor. Senti raiva, tristeza e uma pontada de esperança que tentei abafar.

— Achas mesmo que podes aparecer assim, depois de tudo? — perguntei baixinho.

Ele baixou a cabeça. — Não espero que me perdoes já. Só quero uma oportunidade para mostrar que mudei.

Durante semanas, Rui tentou aproximar-se de Leonor. Levava-lhe livros infantis, tentava brincar com ela no parque, mas ela olhava-o sempre com desconfiança. Uma vez ouvi-a perguntar à avó: — Porque é que o papá foi embora?

A minha mãe olhou para mim, sem saber o que responder. Eu própria não sabia.

Os meus amigos diziam coisas diferentes: — Dá-lhe uma hipótese, Sofia! — dizia a Ana, sempre romântica. — As pessoas mudam! — Mas o Pedro era mais cético: — Quem abandona uma filha assim não merece nada.

Eu oscilava entre o desejo de proteger a minha filha e a vontade de acreditar que as pessoas podem mudar. Comecei a reparar nos pequenos gestos de Rui: ajudava-me com as compras, oferecia-se para levar Leonor à escola quando eu estava doente, ligava só para saber se precisávamos de alguma coisa.

Uma noite, depois de adormecer Leonor, sentei-me com Rui na varanda. O ar estava pesado de perguntas não feitas.

— Porque é que foste embora? — perguntei finalmente.

Ele demorou a responder. — Tive medo. Medo de não ser suficiente, medo de falhar como pai… E depois foi tudo tão rápido… Quando dei por mim já era tarde demais para voltar atrás.

— E agora? Porque voltaste?

— Porque nunca deixei de pensar em vocês. Porque percebi que fugir não resolveu nada. Só aumentou o vazio.

Olhei para ele e vi lágrimas nos olhos dele pela primeira vez desde que o conhecia.

Os meses seguintes foram um teste à minha paciência e ao meu coração. Houve discussões acesas: — Não podes querer ser pai só quando te apetece! — gritei-lhe um dia em frente à escola da Leonor. Houve silêncios pesados ao jantar, olhares trocados entre mim e a minha mãe, telefonemas das tias a perguntar se eu estava louca por deixar Rui voltar a entrar nas nossas vidas.

Mas também houve momentos bons: Leonor a rir-se às gargalhadas quando Rui lhe ensinou a andar de bicicleta; nós os três a fazermos piqueniques no parque da Paz; noites em que adormecíamos juntos no sofá a ver filmes antigos.

A dúvida nunca me abandonou: estaria eu a fazer o certo? Estaria a dar um mau exemplo à minha filha ao perdoar alguém que nos magoou tanto?

Certa noite, Leonor veio ter comigo ao quarto e disse: — Mamã, gosto quando o papá está cá… mas tenho medo que ele vá embora outra vez.

Abracei-a com força e prometi-lhe que nunca mais iria deixá-la sozinha com esse medo. Mas sabia que não podia controlar tudo.

Agora estou aqui, sentada na mesma varanda onde tantas vezes chorei sozinha, a olhar para Rui e para Leonor a brincar no jardim lá em baixo. O sol põe-se devagar sobre Almada e eu sinto o peso da decisão sobre os meus ombros.

Será possível perdoar verdadeiramente alguém que nos partiu o coração? Ou será que há feridas que nunca saram? E vocês, o que fariam no meu lugar?