Entre o Perdão e o Medo: A Jornada de Cora
— Cora, abre a porta. Por favor, precisamos conversar.
A voz do Luís ecoou pelo corredor do prédio como um trovão inesperado numa tarde abafada. Eu congelei. O pano de prato caiu das minhas mãos e a pequena Beatriz, sentada no chão da cozinha, olhou para mim com aqueles olhos castanhos tão parecidos com os dele. Três anos. Três anos de silêncio, de noites em claro, de perguntas sem resposta. E agora ele estava ali, do outro lado da porta, como se nada tivesse acontecido.
Meu coração batia tão forte que parecia querer saltar pela boca. Respirei fundo, tentando não chorar. Não na frente da minha filha. Não de novo.
— Mamã? Quem é?
A voz dela era suave, inocente. Como explicar a uma criança de três anos que o homem do outro lado da porta era o pai que nunca conheceu?
— É só um senhor, filha. Vai brincar no quarto, está bem?
Ela obedeceu sem questionar, arrastando o urso de peluche pelo corredor. Esperei ouvir a porta do quarto fechar antes de destrancar a porta da entrada.
Luís estava ali, mais magro, barba por fazer, olhos fundos. O mesmo casaco velho que usava quando me deixou. O cheiro dele misturava-se com o cheiro da chuva que começava a cair lá fora.
— Cora…
Levantei a mão, interrompendo-o.
— Não tens vergonha? Depois de tudo este tempo…
Ele baixou os olhos.
— Eu sei que não tenho desculpa. Mas precisava ver-te. Ver a Beatriz.
Senti uma raiva antiga subir-me à garganta.
— Precisavas? Onde estavas quando precisei de ti? Quando ela nasceu? Quando ela chorava noites inteiras e eu não sabia o que fazer? Quando perdi o emprego porque não tinha com quem a deixar?
Ele ficou calado. O silêncio era pesado, quase sufocante.
— Eu era um cobarde — murmurou ele. — Tive medo. Não sabia ser pai. Não sabia ser homem.
As lágrimas começaram a escorrer-me pelo rosto. Tantas vezes imaginei este momento. Tantas vezes ensaiei o que lhe diria. Mas agora que ele estava ali, tudo parecia pequeno diante da dor que carreguei sozinha.
— E agora? Achas que podes simplesmente voltar e tudo fica bem?
Ele abanou a cabeça.
— Não espero isso. Só quero pedir-te perdão. Quero conhecer a minha filha.
Fechei os olhos por um instante. Lembrei-me das noites em que rezava baixinho, pedindo força para não desistir. Da minha mãe a dizer-me para não perder a fé, mesmo quando tudo parecia perdido.
— Luís… — comecei, mas a voz falhou-me.
Ele ajoelhou-se à minha frente, como se procurasse redenção.
— Por favor, Cora. Deixa-me tentar ser melhor agora.
Ouvimos passos pequenos no corredor. Beatriz apareceu à porta, abraçando o urso com força.
— Mamã…
Luís olhou para ela com olhos marejados.
— Olá… Beatriz — disse ele, hesitante.
Ela escondeu-se atrás das minhas pernas.
— Quem é?
Ajoelhei-me ao lado dela e acariciei-lhe o cabelo.
— É um amigo da mamã, filha.
Luís mordeu o lábio, lutando contra as lágrimas.
— Posso… posso falar contigo um bocadinho?
Beatriz olhou para mim à procura de aprovação. Assenti com um gesto e ela aproximou-se dele devagarinho.
O silêncio entre nós era feito de tudo o que ficou por dizer durante três anos. Luís tentou sorrir-lhe, mas era um sorriso triste, cheio de culpa.
— Gosto muito do teu urso — disse ele.
Ela não respondeu, mas ficou ali parada, observando-o com curiosidade infantil.
Depois daquele dia, Luís começou a aparecer mais vezes. Trazia brinquedos baratos e histórias inventadas sobre onde tinha estado — histórias que eu sabia serem mentira, mas deixava passar por causa dela. A minha mãe não gostava nada daquilo.
— Vais deixar esse homem entrar outra vez na tua vida? Depois do que te fez?
Eu suspirava, cansada.
— Não é por mim, mãe. É pela Beatriz. Ela tem direito a conhecer o pai.
A minha mãe abanava a cabeça com aquele ar resignado de quem já viu demasiado na vida para acreditar em milagres.
Os vizinhos começaram a comentar também. No café da esquina, ouvi sussurros quando passava:
— Olha, é aquela rapariga que foi deixada grávida…
— Agora anda outra vez com ele? Que falta de amor-próprio!
Fingia não ouvir, mas cada palavra era uma ferida aberta.
À noite, depois de adormecer Beatriz, sentava-me na cama e rezava em silêncio:
“Senhor, dá-me força para fazer o que é certo. Ajuda-me a perdoar sem esquecer quem sou.”
O Luís tentava mostrar-se presente — levava Beatriz ao parque ao domingo, ajudava com as compras quando podia — mas havia sempre uma distância entre nós. Uma sombra do passado que nem o tempo conseguia dissipar.
Um dia, ao buscá-la à creche, encontrei-o à porta com um ramo de flores murchas na mão.
— Cora… queria pedir-te desculpa outra vez. Sei que nunca vou conseguir compensar o que fiz… mas gostava de tentar recomeçar contigo. Com vocês as duas.
Senti um nó no estômago. Olhei para ele e vi o mesmo rapaz inseguro de sempre — mas também vi um homem cansado de fugir.
— Luís… não sei se consigo confiar em ti outra vez. Não depois do que passámos.
Ele baixou os olhos.
— Eu percebo. Só queria que soubesses que estou aqui agora. E não vou desistir tão facilmente desta vez.
Durante semanas lutei comigo mesma: entre o medo de ser magoada outra vez e a esperança de dar à minha filha uma família completa. Falei com o padre António na igreja do bairro:
— Padre… como é que se perdoa alguém que nos partiu o coração?
Ele sorriu tristemente:
— O perdão não é esquecer o passado, Cora. É escolher não deixar que ele te defina para sempre.
Essas palavras ficaram comigo como uma oração silenciosa.
Numa noite chuvosa, sentei-me à mesa da cozinha com Luís depois de Beatriz adormecer. Ouvia-se apenas o som da chuva nas telhas e o tic-tac do velho relógio da parede.
— Luís… preciso saber se mudaste mesmo ou se isto é só remorso passageiro.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez sem desviar o olhar.
— Mudei porque perdi tudo quando vos perdi a vocês. Passei fome, dormi na rua… só pensava em voltar atrás no tempo e fazer tudo diferente.
As lágrimas correram-lhe pelo rosto e senti pela primeira vez uma compaixão inesperada misturada com tristeza profunda.
— Não posso prometer-te nada — disse-lhe baixinho — mas podemos tentar ser pais juntos para a Beatriz. Só isso por agora.
Ele sorriu entre lágrimas e segurou-me as mãos com delicadeza.
Os meses passaram devagarinho. A confiança foi-se reconstruindo aos poucos — nunca completamente igual ao que poderia ter sido, mas suficiente para darmos passos pequenos juntos: festas de aniversário simples no quintal da minha mãe; idas ao parque; tardes em família improvisada.
A dor nunca desapareceu totalmente — há feridas que cicatrizam sem nunca sarar por completo — mas aprendi a viver com elas sem deixar que me definissem. A fé foi o meu refúgio nos dias maus e a esperança nos dias bons.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente quem nos magoa tão profundamente? Ou será que aprendemos apenas a conviver com as cicatrizes?
E vocês? O que fariam no meu lugar?