Entre o Perdão e o Abandono: A História de Manuel

— Não, não venho buscá-lo. — A voz da minha irmã, Clara, soou fria e definitiva do outro lado da linha. Senti o telefone escorregar-me das mãos, mas a enfermeira apanhou-o antes de cair. O olhar dela era de pena, mas também de compreensão. Eu estava sentado na cadeira de rodas, ainda com o braço esquerdo dormente e a cabeça pesada de memórias e remorsos.

Naquele momento, tudo o que me restava era o silêncio do corredor da unidade de reabilitação neurológica do Hospital de Santa Maria. O cheiro a desinfetante misturava-se com o perfume barato da senhora da limpeza, e o som distante de um rádio sintonizado numa estação popular fazia-me lembrar os domingos em casa dos meus pais, quando ainda éramos uma família.

— Manuel, quer que tente ligar a mais alguém? — perguntou a enfermeira, com uma voz doce mas cansada. — Tem algum amigo ou vizinho?

Sorri, mas foi um sorriso triste. Amigos? Depois do acidente, todos desapareceram. Uns porque não sabiam lidar com a minha nova condição, outros porque nunca foram verdadeiramente amigos. Vizinhos? No bairro onde cresci, as pessoas fecham-se em casa ao fim do dia e só abrem a porta para os filhos ou para o carteiro.

— Não vale a pena — respondi. — Se a Clara não vem, ninguém vem.

A enfermeira assentiu e afastou-se, deixando-me sozinho com as minhas recordações. Olhei para as minhas mãos trémulas e lembrei-me do dia em que tudo mudou. Foi numa noite chuvosa de novembro, há quase um ano. Tinha discutido com o meu pai por causa do dinheiro — sempre o maldito dinheiro — e saí de casa furioso. Peguei no carro e acelerei pela estrada nacional como se pudesse fugir dos meus problemas. Só me lembro do som dos travões a chiar e do clarão dos faróis antes de tudo ficar escuro.

Acordei semanas depois, com metade do corpo paralisado e a cabeça cheia de perguntas sem resposta. A minha mãe chorava ao meu lado, mas o meu pai nunca apareceu. A Clara vinha de vez em quando, mas sempre com pressa, sempre com aquele olhar de quem está ali por obrigação.

— Manuel, tens de perceber que não posso fazer tudo sozinha — disse ela uma vez, enquanto me ajudava a comer sopa. — Tenho dois filhos pequenos e um marido que trabalha por turnos. Não posso estar sempre aqui.

Eu sabia que ela tinha razão. Mas também sabia que havia algo mais por trás daquela frieza: mágoas antigas, discussões nunca resolvidas, palavras duras trocadas em jantares de família que acabavam sempre mal.

O nosso pai era um homem difícil. Crescemos num ambiente onde o silêncio era mais ensurdecedor do que qualquer grito. A minha mãe tentava manter a paz, mas era uma paz frágil, feita de concessões e sacrifícios. Eu fui o rebelde: tatuagens, cabelo comprido, noites passadas fora de casa com amigos duvidosos. A Clara era a filha exemplar: boas notas, trabalho estável num escritório em Lisboa, casamento tradicional.

Quando adoeci, esperava que a doença servisse de ponte entre nós. Mas foi o contrário: afastou-nos ainda mais. A Clara nunca me perdoou por ter sido o filho problemático, por ter dado dores de cabeça aos nossos pais quando ela só queria ser invisível.

Na unidade de reabilitação, vi muitas famílias diferentes. Uns vinham todos os dias visitar os seus doentes; outros apareciam só ao fim-de-semana; alguns nunca vinham. Havia quem chorasse ao ver os filhos incapazes de andar ou falar; havia quem suspirasse de alívio por finalmente ter uma desculpa para se afastar.

Lembro-me de um senhor idoso, o senhor António, que chorava todas as noites porque os filhos nunca lhe telefonavam. E da dona Rosa, que recebia flores todas as sextas-feiras da neta adolescente. Eu invejava essas demonstrações de afeto simples.

No dia em que soube que ia ter alta, senti um misto de esperança e medo. Esperança porque queria sair dali; medo porque não sabia para onde ir. O assistente social perguntou-me se tinha alguém que me pudesse receber em casa.

— Tenho uma irmã — disse eu. — Mas não sei se ela vai querer.

Ligaram-lhe na minha presença. Ouvi cada palavra como se fossem facas:

— Não posso ir buscá-lo — repetiu ela. — Ele sabe porquê.

O assistente social tentou argumentar:

— Dona Clara, compreenda que o seu irmão precisa de apoio nesta fase…

— Eu compreendo — interrompeu ela. — Mas há coisas que não se esquecem nem se perdoam.

Fiquei ali sentado, sem saber se chorava ou gritava. O que é que eu tinha feito para merecer aquilo? Será que os erros do passado nunca podem ser apagados?

Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto branco do quarto partilhado com outros três homens em situações semelhantes à minha. Pensei em tudo o que tinha dito à Clara ao longo dos anos: as palavras cruéis durante as discussões; as vezes em que lhe pedi dinheiro emprestado e nunca devolvi; as festas em casa dos nossos pais quando ela precisava de estudar para os exames.

No fundo, sabia que tinha falhado como irmão. Mas será que isso justificava ser abandonado naquele momento?

No dia seguinte, a enfermeira trouxe-me um saco com as minhas coisas: umas calças velhas, duas t-shirts e um casaco puído. O assistente social disse-me que iam tentar arranjar uma vaga num lar temporário até eu conseguir reabilitar-me o suficiente para viver sozinho.

Enquanto esperava pela ambulância que me levaria para esse novo destino incerto, ouvi uma conversa entre duas auxiliares no corredor:

— Coitado do Manuel… Sabes que a irmã dele não quer saber dele?

— Pois… Mas ninguém sabe o que se passou naquela família. Às vezes é melhor assim.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que as pessoas julgam tão facilmente sem saberem a história toda? Porque é que ninguém pergunta ao doente como se sente?

No lar temporário conheci outras pessoas como eu: homens e mulheres deixados para trás pelas famílias por razões várias — algumas justificadas, outras nem tanto. Partilhávamos histórias à mesa do pequeno-almoço e dávamos força uns aos outros nos dias maus.

Um dia recebi uma carta da Clara. Abri-a com mãos trémulas:

“Manuel,

Sei que estás magoado comigo. Eu também estou magoada contigo há muitos anos. Crescemos numa casa difícil e cada um fez o melhor que pôde para sobreviver. Eu tentei ser forte por todos nós; tu tentaste fugir da dor à tua maneira.

Não consigo perdoar-te tudo o que fizeste aos nossos pais nem a mim. Mas também não consigo deixar de pensar em ti todos os dias.

Espero que encontres paz e consigas recomeçar.

Clara”

Chorei como há muito tempo não chorava. Percebi então que o perdão não é um presente que se dá ao outro; é um processo doloroso e solitário.

Hoje continuo no lar, a tentar recuperar forças e aprender a viver com as minhas limitações físicas e emocionais. Às vezes olho pela janela e vejo famílias a passear no jardim lá fora — mães com filhos pequenos, casais idosos de mãos dadas — e pergunto-me se algum dia vou conseguir reconstruir algo parecido.

Será possível recomeçar quando se perdeu tudo? Ou será que há feridas demasiado profundas para sarar?

E vocês? Já sentiram este peso do passado nas vossas vidas? O que fariam no meu lugar?