Entre o Perdão e a Sobrevivência: O Dilema de Aurora

— Vais mesmo virar-me as costas agora, Aurora? — A voz do meu pai ecoou pela sala, rouca e carregada de raiva, como tantas outras vezes ao longo da minha vida. Senti o estômago revirar-se, as mãos suadas apertadas no colo. Tinha trinta anos, mas naquele instante voltei a ser a menina de oito, encolhida no canto da cozinha, a rezar para que ele não reparasse em mim.

O hospital cheirava a desinfetante e medo. A minha mãe, Maria do Carmo, olhava para mim com olhos vermelhos, suplicantes. — Ele precisa de ti, filha. És a única compatível. — O silêncio entre nós era pesado, quase sólido. Sabia que ela não dizia tudo: sabia do que ele me fizera, mas nunca teve coragem para o enfrentar. Sempre preferiu fingir que nada acontecia, que os gritos e os estalos eram apenas “fases”.

Lembro-me da primeira vez que me bateu. Tinha seis anos e deixei cair um copo de vidro. O estalo foi tão forte que vi estrelas. Depois vieram os castigos: trancar-me no quarto às escuras, obrigar-me a ajoelhar no milho durante horas. E as palavras… “Nunca vais ser nada na vida, Aurora. És fraca como a tua mãe.” Cresci com medo de respirar alto demais.

Na escola, inventava desculpas para as nódoas negras. “Caí da bicicleta”, dizia à professora Teresa, que me olhava com desconfiança. Nunca ninguém fez perguntas a sério. Em casa, o meu irmão mais novo, Rui, era poupado à maior parte da violência. Talvez por ser rapaz, talvez porque o meu pai via nele uma continuação de si mesmo.

Quando fiz dezoito anos, jurei nunca mais voltar. Fui estudar para Lisboa, arranjei trabalho num café e aluguei um quarto minúsculo em Arroios. A liberdade sabia a pouco, mas era minha. Durante anos evitei telefonemas e visitas à terra. Só via a minha mãe quando ela conseguia escapar-se para me ver às escondidas.

Agora estava ali, sentada numa cadeira dura do hospital de Santa Maria, com o meu pai à beira da falência renal. O médico explicou: “O senhor António precisa urgentemente de um transplante. A Aurora é compatível.” Senti-me presa numa armadilha cruel.

Naquela noite não dormi. Ouvia as vozes do passado: “Não prestas para nada!”, “És um erro!”. Lembrei-me das vezes em que desejei que ele desaparecesse. Mas agora era eu quem podia decidir se ele vivia ou morria.

No dia seguinte, Rui apareceu no hospital. — Não podes fazer isto à família — disse-me ele, sem me olhar nos olhos. — Não percebes que a mãe não vai aguentar se ele morrer?

— E tu? — perguntei-lhe, com voz trémula. — Tu vais aguentar viver sabendo o que ele me fez?

Rui encolheu os ombros. — Ele é nosso pai…

Senti raiva dele, da mãe, de todos os que fingiram não ver. Mas acima de tudo senti raiva de mim mesma por ainda me importar.

Na sala de espera, uma enfermeira aproximou-se de mim com um sorriso triste. — Não se sinta pressionada — disse baixinho. — A decisão é sua.

Olhei para as mãos dela: unhas curtas, pele gretada pelo álcool-gel. Perguntei-me quantas histórias como a minha já teria ouvido.

Na manhã seguinte, entrei no quarto do meu pai. Ele estava pálido, ligado às máquinas, mas os olhos ainda tinham aquele brilho duro.

— Então? Vais dar-me o rim ou não? — perguntou sem rodeios.

Sentei-me na beira da cama e respirei fundo.

— Não vou — disse-lhe finalmente.

O silêncio caiu como uma bomba. Ele olhou para mim como se eu fosse um inseto.

— Ingrata! Depois de tudo o que fiz por ti!

Ri-me amargamente.

— Tudo o que fizeste por mim? Ou tudo o que me tiraste?

Ele virou a cara para a parede.

Saí do quarto com as pernas a tremer. Lá fora, a minha mãe chorava baixinho.

— Perdoa-me — sussurrou ela.

— Não posso perdoar o imperdoável — respondi.

Durante semanas fui assombrada pela culpa e pelo alívio. O meu pai acabou por receber um rim de um dador anónimo meses depois. Sobreviveu, mas nunca mais falou comigo.

A família dividiu-se: alguns chamaram-me egoísta; outros disseram que fui corajosa. Eu própria não sei se fui forte ou fraca.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas Auroras há em Portugal? Quantos filhos são obrigados a escolher entre salvar quem lhes destruiu a infância ou salvar-se a si próprios?

Será possível quebrar o ciclo sem nos perdermos pelo caminho? E vocês… teriam feito diferente?