Entre o Perdão e a Dor: A História de Uma Neta e Sua Avó
— Não chores, menina! Já te disse que lágrimas não resolvem nada nesta casa! — A voz da minha avó, Maria do Carmo, ecoava pela cozinha fria, enquanto eu tentava esconder o rosto molhado atrás das mãos pequenas. Tinha oito anos e já sabia que chorar era proibido. Naquele momento, desejei ser invisível, desaparecer entre os azulejos brancos e as panelas penduradas.
A minha mãe, Ana Paula, trabalhava em dois empregos para nos sustentar depois que o meu pai nos deixou. Era a minha avó quem ficava comigo. Mas, em vez de colo, recebi dureza. — Anda daí, Joana! Não tens tempo para brincadeiras! — dizia ela, sempre apressada, sempre insatisfeita. O cheiro de sopa de feijão misturava-se ao medo que eu sentia de errar.
Os anos passaram e a casa continuou igual: paredes gastas, móveis antigos e a presença constante da minha avó, como uma sombra. Cresci a ouvir que não era suficiente. — Olha para ti! Sempre distraída, nunca vais ser ninguém na vida! — gritava ela quando as notas da escola não eram perfeitas. Eu estudava até tarde, tentando arrancar um sorriso dela, mas só recebia críticas.
A minha mãe tentava intervir. — Mãe, não sejas tão dura com a Joana. Ela é só uma criança! — Mas a avó respondia com desprezo: — Se não for eu a educá-la, quem será? Tu nem em casa estás! — E assim, entre as duas mulheres mais importantes da minha vida, eu sentia-me perdida.
Quando fiz quinze anos, comecei a perceber que havia algo errado naquela relação. As amigas falavam das avós com carinho; eu só conhecia distância. Uma vez, tentei confrontá-la:
— Avó, porque é que nunca me abraças?
Ela olhou-me como se eu tivesse dito a coisa mais absurda do mundo:
— Abraços? Isso é para quem tem tempo a perder. O mundo é duro, Joana. Aprende isso cedo.
Na escola, os professores notavam que eu era calada demais. Chamaram a minha mãe para conversar. — A Joana parece triste. Está tudo bem em casa? — perguntaram. A minha mãe chorou nessa noite. — Desculpa, filha. Eu devia proteger-te mais…
Mas como? O medo da minha avó era maior do que tudo.
Aos dezoito anos, consegui entrar na universidade em Lisboa. Lembro-me do dia em que fiz as malas. A avó ficou à porta do quarto:
— Vais fugir como o teu pai? — perguntou com amargura.
— Não estou a fugir. Só quero tentar ser feliz…
Ela virou costas sem dizer adeus.
Em Lisboa, descobri um mundo novo: amigos que me ouviam, professores que elogiavam o meu esforço. Mas a ferida da infância estava lá. Tinha pesadelos com gritos e portas a bater. Fugia de conflitos porque temia perder o controlo.
Durante anos, evitei regressar à aldeia. Falava com a minha mãe ao telefone; ela pedia para visitar:
— A tua avó está velha… Não sabes quanto tempo lhe resta.
Respondi sempre com evasivas. Como perdoar alguém que nunca me amou?
No Natal passado, cedi à insistência da minha mãe e voltei à casa onde cresci. A avó estava mais pequena, encolhida numa manta na sala. Os olhos já não tinham o mesmo brilho duro; pareciam cansados.
Durante o jantar, o silêncio era pesado. A certa altura, ela falou:
— Foste forte… Mais do que eu alguma vez fui.
Fiquei sem palavras. Pela primeira vez, vi fragilidade naquela mulher de pedra.
Depois do jantar, sentei-me ao lado dela no sofá. O relógio fazia tic-tac alto demais.
— Avó… Porque foi sempre tão dura comigo?
Ela demorou a responder:
— Cresci sem mãe. O meu pai batia-me se chorasse ou sorrisse fora de hora. Aprendi que carinho era fraqueza… Quis proteger-te do mundo à minha maneira.
Senti raiva e pena ao mesmo tempo. Quis gritar: “Não percebe que me magoou?” Mas só consegui perguntar:
— E agora? Ainda acha que valeu a pena?
Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos — as primeiras que vi nela:
— Não sei… Talvez tenha errado. Só queria que fosses forte.
Naquela noite não dormi. Pensei em tudo o que perdi: os abraços negados, as palavras duras, a infância roubada pelo medo.
Agora estou aqui, adulta, com uma escolha difícil: perdoar ou seguir em frente sem olhar para trás? Será possível quebrar o ciclo de dor? Ou será que algumas feridas nunca saram?
E vocês? Já tiveram de perdoar alguém que vos magoou profundamente? Como encontraram força para isso?