Entre o Passado e o Presente: O Preço de um Lar Perdido

— Mãe, não podemos assumir esse crédito. Não faz sentido para nós — disse a Inês, com aquela voz fria que aprendeu a usar desde que casou com o Rui.

Senti o chão fugir-me dos pés. O eco das palavras dela ressoou na sala pequena do apartamento que aluguei em Lisboa, depois de vinte anos a viver em Newark. Olhei para ela, para o Rui, sentados lado a lado no sofá, as mãos entrelaçadas como se fossem uma fortaleza contra mim.

— Vocês têm bons empregos, Inês. Eu só quero voltar para casa. É pedir assim tanto? — A minha voz tremeu, mas tentei não chorar. Não ali, não à frente deles.

O Rui suspirou, desviando o olhar para o telemóvel. — O mercado está complicado, Leonor. Não é uma boa altura para assumir dívidas. E nós já temos os nossos planos.

Os nossos planos. Como se eu fosse um obstáculo, um peso morto. Senti-me pequena, como quando era miúda e a minha mãe me deixava sozinha em casa para ir trabalhar noites inteiras na fábrica de conservas.

Vinte anos antes, fugi de Lisboa com a Inês ainda menina, prometendo-lhe uma vida melhor nos Estados Unidos. Trabalhei em limpezas, cuidei de idosos, lavei escadas em prédios onde ninguém sabia o meu nome. Tudo para juntar dinheiro e pagar aquele apartamento modesto em Benfica, o único pedaço de chão que podia chamar meu. Sempre disse à Inês: “Um dia voltamos. Um dia isto tudo vai valer a pena.”

Agora estava ali, de malas feitas e sonhos gastos, a pedir à minha filha que me deixasse voltar para casa. E ela recusava-se.

— Mãe, tu não percebes… — começou ela, mas interrompi-a.

— Não percebo? Passei metade da vida a trabalhar para te dar um futuro! Não percebo? — A raiva misturava-se com mágoa. — O que é que te custa ajudar-me agora?

Ela levantou-se abruptamente. — Não é assim tão simples! Eu e o Rui temos as nossas contas, os nossos projetos! Não podemos ficar presos ao teu passado!

O Rui levantou-se também, tentando acalmar os ânimos. — Leonor, ninguém quer ver-te mal. Mas tens de entender que já não és só tu e a Inês. As coisas mudaram.

As coisas mudaram. Sim, mudaram tanto que já nem reconhecia a minha própria filha.

Saí dali sem dizer mais nada. Caminhei pelas ruas de Lisboa como uma estranha na minha própria cidade. O cheiro das castanhas assadas misturava-se com as memórias da infância: eu e a minha mãe na fila do autocarro, ela cansada mas sempre com um sorriso para mim. Lembrei-me do dia em que lhe disse que ia emigrar. Ela chorou baixinho, sem me querer mostrar as lágrimas.

Agora compreendia aquela dor: a dor de ver um filho partir para longe, de não poder protegê-lo das escolhas difíceis da vida.

Passei dias sem conseguir dormir. O telefone tocava — era a Inês — mas eu não atendia. Sentia-me traída por ela, mas também por mim mesma: teria sido tudo em vão? Teria sacrificado tanto para acabar sozinha?

Uma tarde, fui ao banco tentar renegociar o crédito da casa. O gerente olhou-me com pena.

— Dona Leonor, a sua idade e situação financeira tornam difícil qualquer alteração ao contrato. Se a sua filha não assumir o crédito… — Encolheu os ombros.

Saí do banco com lágrimas nos olhos. Sentei-me num banco de jardim e liguei à minha irmã Maria, que sempre ficou em Portugal.

— Leonor, volta para casa — disse ela. — Ficas comigo até resolveres as coisas.

Mas eu não queria ser um fardo para ninguém.

Nessa noite sonhei com a minha mãe. No sonho ela estava sentada à mesa da cozinha, as mãos calejadas a segurar uma chávena de chá.

— Não desistas do teu lar, filha — disse ela.

Acordei com o coração apertado. Decidi tentar falar com a Inês mais uma vez.

Fui até à casa dela em Odivelas sem avisar. Ela abriu a porta surpreendida.

— Mãe… — começou ela.

— Só quero falar contigo — pedi.

Sentámo-nos à mesa da cozinha enquanto o Rui estava no trabalho.

— Inês, eu sei que tens a tua vida agora. Mas aquele apartamento… é tudo o que me resta do passado e do futuro. Se não conseguires ficar com ele por mim… pelo menos ajuda-me a encontrar uma solução.

Ela olhou para mim com olhos marejados.

— Mãe… eu sinto muito. Sinto mesmo. Mas eu tenho medo de ficar presa ao passado também. O Rui quer comprar casa nova, quer filhos… Eu tenho medo de te magoar se disser que não consigo ajudar.

Abracei-a sem dizer nada. Pela primeira vez em anos senti que éramos só mãe e filha outra vez, sem dívidas nem ressentimentos entre nós.

Nos dias seguintes procurei alternativas: tentei arrendar o apartamento para pagar o crédito, procurei trabalhos temporários mesmo já cansada dos anos de limpezas e noites mal dormidas.

A Inês começou a ligar-me mais vezes. Às vezes só para perguntar se eu precisava de alguma coisa; outras vezes só para ouvir a minha voz.

Uma tarde fomos juntas ao cemitério visitar a campa da minha mãe. Ficámos ali em silêncio muito tempo.

— Sabes — disse-lhe eu — às vezes penso se fiz bem em sair daqui há vinte anos…

Ela apertou-me a mão.

— Fizeste o melhor que sabias, mãe.

O tempo foi passando e aprendi a aceitar que talvez nunca voltasse realmente ao lar que sonhei durante tantos anos. Mas também percebi que o verdadeiro lar é feito das pessoas que nos amam — mesmo quando nos magoam ou nos desiludem.

Hoje continuo a lutar pelo meu cantinho em Lisboa, mas já não guardo rancor à Inês nem ao Rui. Eles têm direito aos seus sonhos como eu tive aos meus.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia conseguimos mesmo regressar ao lugar onde fomos felizes? Ou será que passamos a vida inteira à procura desse regresso impossível?

E vocês? Já sentiram que perderam o vosso lar mesmo estando rodeados pela família?