Entre o Passado e o Presente: O Dia em que Reencontrei os Pais Biológicos da Minha Filha

— Não podes simplesmente aparecer aqui, Leonor! — gritou a minha mãe ao telefone, a voz embargada pela raiva e pelo medo. — Já viste o que isso pode fazer à Matilde? Não pensaste nela?

O telefone tremia nas minhas mãos. O eco das palavras da minha mãe misturava-se com o som abafado da chuva a bater na janela do meu pequeno apartamento em Lisboa. Olhei para Matilde, sentada no sofá, os olhos fixos no telemóvel, alheia à tempestade que se formava à sua volta — e dentro de mim.

Matilde tinha dez anos quando entrou na minha vida, uma menina de olhos grandes e tristes, vinda de um lar de acolhimento em Setúbal. Agora, com dezasseis, era uma adolescente reservada, mas com uma força silenciosa que me fazia acreditar que tudo era possível. Sempre lhe prometi honestidade, mesmo quando a verdade doía. E agora, seis anos depois da adoção, os pais biológicos dela tinham reaparecido.

Tudo começou com uma carta. Uma folha amarelada, escrita à mão, deixada na caixa do correio do prédio. “Querida Leonor, somos os pais da Matilde. Sabemos que ela está bem contigo. Precisamos de falar contigo. Por favor. — Ana e Rui”.

Li aquela carta vezes sem conta antes de contar à Matilde. O medo de perder a filha que escolhi era tão grande que quase me paralisou. Mas sabia que não podia esconder-lhe nada.

— Matilde — disse-lhe numa noite fria de novembro, sentando-me ao seu lado no sofá —, recebi uma carta dos teus pais biológicos.

Ela ficou em silêncio. O olhar dela era um mar revolto, onde se misturavam esperança e mágoa.

— Eles querem ver-me? — perguntou finalmente, a voz quase um sussurro.

Assenti. — Querem falar connosco. Não sei o que querem exatamente…

Matilde não disse nada durante longos minutos. Depois levantou-se e foi para o quarto. Ouvi a porta fechar-se suavemente. Fiquei ali sentada, sozinha com as minhas dúvidas e culpas.

Na manhã seguinte, encontrei-a à mesa da cozinha, já vestida para a escola.

— Quero conhecê-los — disse ela, sem me olhar nos olhos.

O encontro foi marcado para um sábado à tarde, num jardim perto do Cais do Sodré. Quando os vi ao longe, o coração quase me saltou do peito. Ana era magra, com o cabelo desgrenhado e roupas gastas; Rui tinha o rosto marcado pelo tempo e pelos vícios que nunca conseguiu largar. Estavam diferentes das fotografias do processo de adoção — mais velhos, mais cansados.

— Olá, Matilde — disse Ana, a voz trémula.

Matilde ficou imóvel durante uns segundos antes de se aproximar lentamente. Eu mantive-me ao lado dela, sentindo-me intrusa na própria vida da minha filha.

A conversa foi tensa. Ana chorou muito; Rui mal falou. Contaram-nos que viviam na rua há mais de dois anos, depois de perderem o emprego e a casa em Almada. Pediram desculpa a Matilde por tudo o que lhe tinham feito passar.

— Só queremos saber se estás bem — disse Ana, agarrando as mãos da filha.

No caminho para casa, Matilde não disse uma palavra. À noite, entrou no meu quarto sem bater.

— Eles não têm onde ficar — murmurou. — Podemos ajudá-los?

Fiquei sem palavras. A ideia de trazer os pais biológicos da minha filha para dentro da nossa casa parecia absurda… e perigosa. Mas vi nos olhos dela uma súplica silenciosa.

— Podemos tentar — respondi finalmente, sentindo um nó apertar-me o estômago.

No domingo seguinte, Ana e Rui entraram na nossa casa pela primeira vez. Trouxeram apenas um saco cada um e um olhar de vergonha difícil de suportar.

A primeira semana foi um caos silencioso. Ana passava horas a olhar pela janela; Rui fumava compulsivamente na varanda. Eu tentava manter a rotina: preparar o jantar, ajudar a Matilde com os trabalhos da escola, fingir normalidade.

Mas nada era normal. A minha mãe ligava todos os dias:

— Vais arrepender-te disto, Leonor! Eles vão estragar tudo! — dizia ela, cada vez mais exaltada.

Eu tentava acalmá-la, mas no fundo também tinha medo. Medo de perder Matilde para eles; medo de que eles voltassem aos velhos hábitos; medo de não ser suficiente para manter aquela família improvisada unida.

Certa noite, ouvi vozes baixas na sala. Fui espreitar e vi Ana a chorar baixinho enquanto Matilde lhe segurava a mão.

— Desculpa por tudo… — soluçava Ana. — Nunca quisemos abandonar-te…

Matilde não respondeu. Limitou-se a encostar a cabeça ao ombro da mãe biológica.

No dia seguinte, Rui desapareceu. Saiu de manhã para “dar uma volta” e não voltou para jantar. Ana entrou em pânico; Matilde ficou furiosa.

— Ele nunca vai mudar! — gritou ela comigo, atirando um copo ao chão.

Tentei acalmá-la:

— Ele está a tentar… Mas estas coisas levam tempo…

— Não quero saber! — berrou ela antes de se fechar no quarto.

Rui voltou dois dias depois, bêbado e com um olho negro. Disse que tinha sido assaltado na rua. Ana chorou; eu senti raiva e impotência.

As semanas passaram e as tensões aumentaram. A minha relação com Matilde tornou-se distante; ela passava mais tempo com Ana do que comigo. Senti ciúmes — uma emoção feia e inesperada.

Uma noite, depois do jantar, Ana pediu para falar comigo sozinha.

— Leonor… obrigada por tudo o que fizeste pela nossa filha… Mas não queremos ser um peso para ti…

Olhei-a nos olhos e vi ali uma tristeza antiga, mas também gratidão sincera.

— Não são um peso… Só quero que a Matilde seja feliz…

Ana sorriu tristemente:

— Ela é feliz contigo. Tu és a mãe dela agora…

No dia seguinte, quando acordei, Ana e Rui tinham ido embora. Deixaram um bilhete na mesa da cozinha: “Obrigada por tudo. Cuida bem da nossa menina”.

Matilde chorou durante dias. Eu tentei consolá-la como pude:

— Eles precisam de encontrar o próprio caminho…

Ela olhou-me nos olhos:

— E se nunca mais os vir?

Não soube responder-lhe.

Hoje, meses depois desse inverno difícil, ainda me pergunto se fiz o certo ao abrir as portas da nossa casa ao passado da Matilde. Será possível conciliar dois mundos tão diferentes? Ou será que há feridas que nunca cicatrizam completamente?

Às vezes dou por mim a olhar para a Matilde enquanto ela dorme e penso: “O amor basta para curar tudo? Ou há dores que nem o tempo consegue apagar?” E vocês? O que fariam no meu lugar?