Entre o Orgulho e a Solidão: O Dia em que Pedi Ajuda à Minha Sogra
— Não percebo, Joana. Como é possível ela virar-me as costas assim? — perguntei, com a voz embargada, enquanto mexia o café já frio. O cheiro a torradas queimadas misturava-se com o perfume barato do café de esquina onde nos encontrámos, longe do bulício do Chiado, mas perto o suficiente para sentir Lisboa a pulsar nas paredes.
Joana olhou-me com aquela expressão de quem já ouviu demasiadas histórias tristes para se surpreender. — Rita, sabes como são as pessoas quando se trata de dinheiro. Ainda mais quando é família…
Apertei a chávena com força. O meu marido, Miguel, estava desempregado há meses. Eu fazia uns biscates como tradutora, mas nada fixo. As contas empilhavam-se na gaveta da cozinha: luz, água, renda. O frigorífico parecia cada vez mais vazio. E a minha sogra, Dona Lurdes, vivia num apartamento enorme na Avenida da Liberdade, rodeada de porcelanas e quadros caros, mas incapaz de estender uma mão.
— Lembras-te quando ela me disse que eu era “boa rapariga, mas pouco ambiciosa”? — perguntei, tentando sorrir. Joana acenou, solidária. — Agora vejo que era só o começo.
Na semana passada, depois de muito hesitar, decidi pedir-lhe ajuda. Miguel não queria — orgulho ferido, dizia ele — mas eu já não aguentava ver os miúdos a discutir pelo último iogurte.
Lembro-me do caminho até à casa dela: as mãos a suar, o coração aos pulos. Toquei à campainha e ouvi os passos dela ecoarem no mármore do corredor.
— Rita? Que surpresa! — disse ela, com aquele sorriso frio que nunca chegava aos olhos.
Expliquei-lhe tudo: o desemprego do Miguel, as contas, os miúdos. Falei baixo, quase envergonhada. Ela ouviu-me em silêncio, ajeitando o lenço de seda ao pescoço.
— Sabes, Rita… Todos temos de aprender a viver com as nossas escolhas. Eu também passei dificuldades quando era nova. Não me estendi no sofá à espera que alguém me salvasse.
Senti o rosto a arder. — Não estou a pedir esmola. Só um empréstimo até as coisas melhorarem.
Ela levantou-se devagar e pousou a chávena na mesa de vidro. — O Miguel é um homem feito. Tem de aprender a lidar com os próprios problemas. Se eu começar a ajudar-vos agora, nunca mais acabam.
Saí dali com um nó na garganta e uma raiva surda a crescer dentro de mim. Miguel ficou furioso quando soube que eu tinha ido falar com ela. — Não quero nada daquela mulher! — gritou ele, batendo com a porta do quarto.
Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e discussões abafadas para não acordar os miúdos. À noite, ouvia Miguel a chorar baixinho na casa de banho. Eu fingia dormir.
No café com Joana, tudo aquilo parecia ainda mais pesado. Ela contou-me dos pais doentes e do irmão que nunca ajuda em casa. Rimo-nos das nossas desgraças como quem tenta afastar fantasmas.
— Achas que fiz mal em pedir ajuda? — perguntei-lhe.
Ela encolheu os ombros. — Fizeste o que qualquer mãe faria. Mas há pessoas que confundem orgulho com frieza.
O telemóvel vibrou na mala: uma mensagem da escola a lembrar que o almoço dos miúdos estava em atraso. Senti-me esmagada por uma culpa antiga — aquela sensação de nunca ser suficiente.
Naquela noite, Miguel sentou-se ao meu lado no sofá. Estava cansado, os olhos vermelhos.
— Desculpa ter gritado contigo — murmurou ele. — Só não suporto ver-te assim…
Abracei-o com força. — Vamos sair disto juntos. Nem que tenha de limpar escadas ou vender bolos na feira.
Ele sorriu pela primeira vez em semanas.
No dia seguinte, fui entregar currículos em cafés e lojas do bairro. Uma senhora idosa pediu-me para lhe ler cartas antigas em troca de uns trocos. Aceitei sem hesitar.
À noite, Dona Lurdes ligou para saber dos netos. Falou como se nada tivesse acontecido. Perguntou se precisavam de roupa para o inverno.
— Só precisamos que nos trate como família — respondi antes de desligar.
Agora escrevo estas linhas enquanto os miúdos dormem e Miguel procura empregos online. Penso em quantas famílias vivem assim: paredes meias com o luxo e a indiferença dos seus próprios parentes.
Será que o orgulho vale mais do que um gesto de compaixão? Quantas vezes fechamos portas por medo de nos sentirmos vulneráveis? E vocês… já sentiram esta solidão dentro da própria família?