Entre o Orgulho e a Dor: O Peso de Ser Mãe em Tempos Difíceis
— Mãe, não percebes? Toda a gente repara. Os pais do Rui ajudaram-nos com o carro, com a casa… E tu, tu nem consegues dar uma ajuda quando mais preciso! — As palavras da minha filha, Mariana, cortaram-me como uma lâmina fria numa manhã de janeiro. Estávamos sentadas na cozinha, a mesa entre nós parecia um abismo. O cheiro do café misturava-se com o silêncio pesado que se seguiu.
Olhei para as minhas mãos, gastas de anos a limpar casas alheias, e senti uma vergonha que nunca tinha sentido antes. Não era só por não poder ajudar — era por sentir que, aos olhos dela, eu valia menos. Tentei falar, mas a voz saiu-me trémula:
— Mariana, filha… Eu faço o que posso. Sabes bem como as coisas têm sido difíceis desde que o teu pai nos deixou.
Ela desviou o olhar, os olhos húmidos de raiva ou talvez de tristeza. — Não percebes! Não é só o dinheiro. É… é tudo. Sinto-me sempre inferior quando estamos com os pais do Rui. Eles falam das viagens, dos presentes, das ajudas… E eu só penso no que tu não podes dar.
Senti o peito apertar-se. Recordei os dias em que Mariana era pequena e corria para mim com desenhos feitos na escola, orgulhosa do pouco que tínhamos. Agora, parecia que tudo isso tinha desaparecido, engolido pela comparação constante com os outros.
O Rui entrou na cozinha nesse momento, sorrindo sem perceber a tensão. — Está tudo bem?
Mariana limpou as lágrimas rapidamente. — Está tudo ótimo, amor.
Ele olhou para mim com um sorriso educado, mas distante. Sempre senti que ele me via como um fardo para a vida deles — uma mãe pobre que só trazia constrangimento.
Depois do almoço, fui para casa a pé. O vento frio batia-me no rosto, mas não era nada comparado ao frio dentro de mim. Cada passo era mais pesado que o anterior. Lembrei-me de quando Mariana era bebé e eu prometi a mim mesma que nunca lhe faltaria nada. Mas a vida trocou-me as voltas: o António foi-se embora com outra mulher quando a Mariana tinha dez anos, deixando-nos com dívidas e promessas vazias.
Trabalhei em limpezas, costuras, tomei conta de idosos — tudo para garantir que ela tivesse o mínimo. Nunca pude dar-lhe luxos, mas dei-lhe amor e sacrifício. Agora parecia que nada disso importava.
Cheguei ao meu pequeno apartamento em Chelas e sentei-me na cama. O telefone tocou: era a minha irmã, Lurdes.
— Adélia, estás bem? Ouvi dizer que houve confusão com a Mariana…
Desabei em lágrimas. — Ela tem vergonha de mim, Lurdes. Vergonha porque não posso dar-lhe dinheiro como os outros pais.
— Não digas isso! Tu fizeste tudo por ela! — tentou consolar-me.
Mas as palavras dela soavam distantes. O orgulho ferido era maior do que qualquer consolo.
Nos dias seguintes, Mariana evitou ligar-me. Só me mandava mensagens curtas: “Está tudo bem.” Senti-me cada vez mais sozinha. No supermercado, via mães com filhas a rir e sentia uma inveja amarga.
Uma tarde, enquanto limpava a casa da Dona Emília em Campo de Ourique, ouvi-a falar ao telefone com a filha:
— Sim, querida, claro que te ajudo com a renda este mês! Não te preocupes.
Senti um nó na garganta. Quando Dona Emília desligou, olhou para mim e percebeu o meu olhar triste.
— Está tudo bem consigo, Adélia?
— Está sim… Só me lembrei da minha filha.
Ela sorriu com ternura. — Sabe, às vezes os filhos esquecem-se do valor das pequenas coisas. Eu também já tive discussões feias com a minha filha por causa de dinheiro… Mas no fim do dia, o amor é o que fica.
Saí dali a pensar se seria mesmo assim. E se Mariana nunca mais me perdoasse por não poder dar-lhe o que ela queria?
No domingo seguinte, decidi ir à missa da paróquia onde Mariana casou. Sentei-me no último banco e rezei baixinho:
— Deus, dá-me forças para não perder a minha filha… Dá-me coragem para aceitar aquilo que não posso mudar.
Ao sair da igreja, encontrei a Dona Rosa, vizinha antiga.
— Então Adélia, há quanto tempo! A tua Mariana está tão bonita… Vi-a outro dia no mercado.
Sorri com esforço. — Sim… Está crescida.
— Sabes, os filhos às vezes esquecem-se do quanto as mães lutam por eles. Mas um dia ela vai perceber.
As palavras dela ficaram comigo durante dias.
Na semana seguinte, recebi uma mensagem inesperada da Mariana: “Mãe, podemos falar?”
O coração bateu mais forte. Fui ter com ela ao café onde costumávamos lanchar quando ela era adolescente.
Ela chegou atrasada, olhos inchados de chorar.
— Desculpa mãe… Eu fui injusta contigo. Só… Sinto-me tão pressionada pelo Rui e pela família dele. Eles fazem-me sentir pequena por não teres dinheiro para ajudar…
Peguei-lhe nas mãos.
— Filha, eu sei que não posso dar-te o mesmo que eles dão. Mas dei-te tudo o que tinha: amor e trabalho duro. Não deixes ninguém fazer-te sentir menos por causa disso — nem mesmo tu própria.
Ela chorou baixinho e abraçou-me como há muito tempo não fazia.
— Eu amo-te mãe… Desculpa mesmo.
Saí daquele café mais leve, mas sabia que as feridas não se curam num dia. A pressão social é real; as comparações são cruéis. Mas talvez agora Mariana comece a ver-me com outros olhos — não como alguém de quem se deve envergonhar, mas como uma mãe que fez tudo o que pôde.
Hoje escrevo esta carta porque sei que não sou a única mãe portuguesa a passar por isto. Quantas de nós já fomos julgadas pelo que não conseguimos dar? Quantas vezes o amor é posto à prova pelo dinheiro?
Pergunto-me: será que algum dia os filhos conseguem ver além do material? Será que conseguimos perdoar-nos por aquilo que nunca pudemos oferecer?