Entre o Meu Irmão e o Meu Cão: Um Laço à Prova de Tudo

— Deixa o cão com alguém, depois vamos visitar a mãe — disse o meu irmão Rui, com aquela voz tensa que só usava quando estava mesmo irritado.

Eu olhei para o Bolota, o meu rafeiro castanho de olhos doces, que abanava a cauda sem perceber o peso das palavras que pairavam no ar. O Rui nunca gostou de cães. Desde pequenos, ele preferia os livros e os jogos de computador, enquanto eu passava horas a brincar no quintal com os animais vadios que apareciam. Agora, adultos, parecia que cada um tinha seguido o seu caminho — ele para Lisboa, eu fiquei em Aveiro — e cada reencontro era mais frio do que o anterior.

— Não vou deixar o Bolota sozinho — respondi, tentando manter a calma. — Ele fica ansioso quando não estou.

O Rui bufou, impaciente. — Sempre a mesma história! Achas que a mãe não sente a tua falta? Ou só pensas nesse cão?

Senti um nó na garganta. A verdade é que a mãe estava doente há meses, e eu sabia que devia visitá-la mais vezes. Mas desde que o pai morreu, há dois anos, tudo ficou mais difícil. O Rui afastou-se, mergulhou no trabalho e deixou-me sozinha com as responsabilidades da casa e da mãe. O Bolota apareceu numa noite de tempestade, magro e assustado, e tornou-se o meu refúgio.

— Não é só o cão — murmurei. — Tu sabes disso.

O Rui virou-me as costas e começou a andar pelo passeio, mãos nos bolsos do casaco. O vento frio de novembro fazia as folhas rodopiarem à nossa volta. Senti-me pequena, como quando éramos crianças e ele me deixava para trás no parque porque eu não conseguia correr tão depressa.

— Olha, faz como quiseres — disse ele por fim, sem me encarar. — Mas não me peças para fingir que isto é normal. A mãe precisa de ti. Eu também precisava… mas tu escolheste.

As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. No trabalho, mal conseguia concentrar-me nos relatórios da fábrica de conservas onde era administrativa. À noite, sentava-me no sofá com o Bolota enroscado aos meus pés e pensava em tudo o que tinha perdido: a cumplicidade com o Rui, as conversas longas à mesa da cozinha, os risos partilhados antes de tudo se desmoronar.

Uma noite, depois de mais uma chamada tensa com o Rui — ele insistia que eu devia ir ver a mãe sem o Bolota — decidi tentar falar com ela diretamente. Liguei-lhe, esperando ouvir a voz fraca mas doce do costume.

— Filha, está tudo bem? — perguntou ela, tossindo ligeiramente.

— Está… mais ou menos — respondi. — O Rui acha que eu devia ir aí sem o Bolota. Achas mesmo que ele incomoda assim tanto?

Houve um silêncio do outro lado da linha. Ouvi o som da televisão baixinho e imaginei-a sentada na poltrona azul da sala.

— O teu irmão preocupa-se contigo — disse ela por fim. — E eu também. Mas sei que esse cão te faz bem. Só queria ver-vos juntos outra vez… como antes.

Desliguei com lágrimas nos olhos. O Bolota veio lamber-me a mão, como se sentisse a minha tristeza. Abracei-o com força.

No sábado seguinte, tomei uma decisão: ia visitar a mãe com o Bolota. Se o Rui não gostasse, paciência. Não podia continuar a viver dividida entre dois amores.

Cheguei à casa da mãe ao fim da manhã. O Rui já lá estava, sentado à mesa da cozinha com uma chávena de café nas mãos. Quando me viu entrar com o Bolota pela trela, franziu o sobrolho.

— A sério? — murmurou.

Ignorei-o e fui abraçar a mãe. Ela sorriu ao ver-nos juntos.

— Olha quem veio! E trouxe companhia…

O Bolota aproximou-se devagarinho dela, farejando-lhe as mãos trémulas. Ela riu-se baixinho e fez-lhe festas na cabeça.

— Sempre foste teimosa — disse ela para mim, piscando-me o olho.

O almoço foi tenso. O Rui mal falou comigo; limitava-se a responder à mãe e evitava olhar para mim ou para o cão. Quando ela foi descansar depois da refeição, ficámos sozinhos na sala.

— Não percebes mesmo nada — disse ele de repente, levantando-se bruscamente. — Achas que isto é sobre um cão? É sobre ti! Sobre nós! Desde que o pai morreu que te escondes atrás desse animal para não enfrentares nada!

Fiquei sem palavras. Senti uma raiva antiga a crescer dentro de mim.

— E tu? Fugiste para Lisboa assim que pudeste! Deixaste-me sozinha com tudo! Achas que foi fácil?

O Rui passou as mãos pelo cabelo, exasperado.

— Eu não consegui ficar… Não consegui olhar para ela todos os dias e ver como está a desaparecer aos poucos! Tu és mais forte do que eu…

As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto. Pela primeira vez em anos vi o meu irmão vulnerável, despido das defesas todas.

Aproximei-me devagar e sentei-me ao lado dele no sofá. O Bolota subiu para as minhas pernas e encostou-se ao Rui também.

— Não sou forte… Só não sei viver sem cuidar de alguém — sussurrei.

Ficámos ali em silêncio durante muito tempo, os três juntos como uma família remendada à pressa. Aos poucos, senti que algo se desanuviava entre nós.

Nos dias seguintes, comecei a ir mais vezes à casa da mãe — sempre com o Bolota — e o Rui começou a aparecer também, menos defensivo. A mãe parecia mais feliz por nos ver juntos outra vez.

Um dia, enquanto passeávamos todos no jardim (até o Rui segurava a trela do Bolota!), ele olhou para mim e disse:

— Talvez eu tenha sido injusto contigo… Se calhar precisamos todos uns dos outros mais do que queremos admitir.

Sorri-lhe pela primeira vez em muito tempo.

Agora olho para trás e penso: quantas famílias se afastam por coisas pequenas? Quantos irmãos deixam de falar por orgulho ou medo? Será que é possível reconstruir laços partidos quando já parece tarde demais?

E vocês? Já tiveram de escolher entre alguém que amam e outra parte importante da vossa vida? Como fizeram para não perder tudo?