Entre o Dever e a Dor: A História de uma Filha Portuguesa
— Vais mesmo deixar-me aqui sozinha, Inês? — A voz da minha mãe ecoou pelo corredor frio do nosso velho apartamento em Lisboa. O cheiro a sopa de feijão misturava-se com o aroma antigo dos móveis, e eu, parada à porta, sentia o peso de todas as palavras que nunca dissemos.
Olhei para trás, para aquela mulher pequena, de cabelo grisalho apanhado num coque apertado. Maria. A minha mãe. A mulher que me ensinou a ser forte, mas nunca me ensinou a ser amada. O seu olhar era duro como sempre, mas havia um tremor na voz que me fez hesitar.
— Não é isso, mãe. Só preciso de respirar um pouco — respondi, tentando esconder o nó na garganta. Mas ela já se virava de costas, como se cada palavra minha fosse uma afronta.
Desde pequena que aprendi a medir os meus gestos. A minha infância foi feita de silêncios e olhares de reprovação. Lembro-me das noites em que ouvia os gritos dela e do meu pai, António, na cozinha. Lembro-me de me encolher na cama, a desejar que tudo aquilo acabasse. Quando o meu pai morreu num acidente na estrada de Sintra, eu tinha apenas dez anos. A partir desse dia, a minha mãe fechou-se ainda mais no seu mundo de amargura.
Nunca houve abraços. Nunca ouvi um “gosto de ti”. Cresci a tentar adivinhar o que ela queria, a antecipar as suas necessidades para evitar discussões. Quando terminei o secundário com boas notas, ela apenas disse:
— Era o mínimo que podias fazer.
Os anos passaram e fui estudar para Coimbra. Longe dela, descobri um pouco de liberdade. Fiz amigos, apaixonei-me por João — um rapaz de olhos castanhos e sorriso fácil — e pela primeira vez senti-me vista. Mas cada visita a Lisboa era um regresso ao passado. O olhar crítico da minha mãe, as perguntas cortantes:
— E esse João? Não me digas que vais largar tudo por um homem?
— Não é largar tudo, mãe. É construir algo novo.
Ela bufava, virava costas. Nunca quis saber dos meus sonhos.
Quando terminei o curso e arranjei trabalho num escritório em Lisboa, voltei para casa por necessidade. O salário era curto e os alugueres impossíveis. O velho apartamento tornou-se uma prisão dourada: eu pagava as contas, fazia as compras, tratava das burocracias — tudo enquanto ela se sentava no sofá a ver novelas ou a resmungar sobre a vida.
Os anos passaram assim. João foi ficando para trás — não aguentou a pressão de uma relação à distância e da minha constante preocupação com a minha mãe. Quando ele me disse que ia casar com outra mulher, chorei sozinha no quarto de infância, abafando os soluços com a almofada para ela não ouvir.
Agora, aos 38 anos, continuo aqui. A minha mãe está mais frágil — as pernas já não obedecem como antes, as mãos tremem quando tenta segurar na chávena de chá. Os médicos dizem que precisa de companhia constante.
Hoje foi mais um desses dias em que me sinto sufocada pelo peso do dever.
— Inês! O comando da televisão! — grita ela da sala.
Vou até lá e entrego-lhe o comando. Ela nem agradece.
— Sabes que a tua prima Teresa vai pôr a mãe num lar? — diz ela, com desdém.
— Às vezes é o melhor para todos — arrisco responder.
Ela lança-me um olhar gelado.
— Só quem não tem coração faz isso à própria mãe.
Sinto o sangue ferver nas veias. Quantas vezes desejei ter coragem para sair por aquela porta e nunca mais voltar? Quantas vezes me perguntei se era egoísmo querer viver a minha vida?
Nessa noite, depois de lhe preparar o jantar e arrumar a cozinha, sento-me à janela do meu quarto. Vejo as luzes da cidade ao longe e penso em tudo o que perdi: amigos afastados pela minha ausência constante, sonhos adiados indefinidamente.
O telefone toca. É Teresa.
— Inês, desculpa ligar tão tarde… Precisas de alguma coisa? — pergunta ela.
— Não… Só estou cansada — respondo.
— Eu sei como é difícil. Mas tens de pensar em ti também. Não podes carregar tudo sozinha.
Desligo com lágrimas nos olhos. Ninguém entende realmente o que é viver com alguém que nunca soube dar amor. Sinto-me presa entre a culpa e o ressentimento.
No dia seguinte, acordo com os gritos da minha mãe:
— Inês! O pequeno-almoço!
Preparo-lhe torradas e chá. Ela reclama do pão estar seco.
— Se tivesses ido ontem à padaria…
Respiro fundo para não responder mal. Penso em todas as vezes que engoli sapos para evitar discussões.
À tarde, vou ao supermercado. No regresso, cruzo-me com Dona Rosa, a vizinha do terceiro andar.
— Então menina Inês, sempre tão atarefada! — diz ela com um sorriso triste.
— É a vida… — respondo.
Ela pousa uma mão no meu braço.
— Não se esqueça de cuidar de si também.
Chego a casa e encontro a minha mãe adormecida no sofá. Olho para ela: tão pequena agora, tão diferente da mulher autoritária que sempre conheci. Sinto pena… mas também raiva por tudo o que nunca tivemos.
Nessa noite, decido falar com ela.
— Mãe… podemos conversar?
Ela olha-me desconfiada.
— O que foi agora?
Sento-me ao lado dela.
— Sinto falta de… não sei… sentir que sou tua filha e não só alguém que está aqui para te servir.
Ela fica em silêncio durante longos segundos. Depois desvia o olhar para a televisão.
— Cada um faz o que tem de fazer nesta vida — diz apenas.
As lágrimas caem-me pelo rosto sem controlo. Levanto-me e vou para o quarto. Sinto-me invisível.
Nos dias seguintes mal falamos uma com a outra. O ambiente torna-se ainda mais pesado.
Uma noite ouço-a chorar baixinho na sala. Hesito antes de entrar.
— Mãe?
Ela limpa rapidamente as lágrimas com as costas da mão.
— Vai dormir, Inês.
Mas eu sento-me ao lado dela em silêncio. Pela primeira vez em muitos anos ficamos ali juntas sem dizer nada — apenas duas mulheres marcadas pela vida, incapazes de se aproximar verdadeiramente.
O tempo passa devagar. Os médicos dizem que ela precisa de mais cuidados do que aqueles que posso dar sozinha. Teresa insiste para eu considerar um lar ou uma cuidadora profissional.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as contas da casa, perco finalmente a paciência:
— Mãe! Eu também tenho uma vida! Também preciso de ser feliz!
Ela olha-me como se eu fosse uma estranha.
— E achas que eu fui feliz? Achas que alguém me perguntou alguma vez se eu queria esta vida?
Ficamos ambas em silêncio, surpreendidas pela honestidade brutal das palavras dela.
Nesse momento percebo: talvez ela nunca tenha sabido amar porque também nunca foi amada verdadeiramente. Talvez carregue dentro dela dores antigas que nunca partilhou comigo.
Na semana seguinte contratamos uma cuidadora chamada Ana Paula — uma mulher doce do Alentejo que traz consigo histórias simples e sorrisos fáceis. Aos poucos vou recuperando algum tempo para mim: volto a encontrar amigos antigos, inscrevo-me num curso de fotografia ao fim-de-semana.
A relação com a minha mãe não se transforma milagrosamente — continuamos distantes, mas há momentos em que partilhamos silêncios menos pesados. Às vezes apanho-a a olhar para mim com ternura disfarçada; outras vezes ainda sinto o velho muro entre nós.
Hoje escrevo esta história sentada no café do bairro enquanto Ana Paula cuida da minha mãe lá em casa. Pergunto-me se algum dia conseguirei perdoar verdadeiramente tudo o que ficou por dizer entre nós… ou se é possível amar alguém mesmo quando nunca aprendemos como fazê-lo?
E vocês? Acham que é possível quebrar este ciclo? Como se aprende a amar quando nunca nos ensinaram?