Entre o Carro e o Neto: O Peso das Prioridades na Minha Família
— Não vai dar mesmo, Mariana. O António quer lavar o carro amanhã, está todo sujo da viagem a Fátima — disse a minha sogra, com aquela voz seca de quem não espera contestação.
Fiquei parada no meio da sala, o telemóvel ainda quente na mão. O meu filho, Tomás, de três anos, brincava no tapete com os carrinhos de plástico que a avó lhe dera no Natal passado. Ele não sabia que, mais uma vez, os avós não viriam vê-lo. Eu sabia. E cada vez doía mais.
Respirei fundo e tentei não chorar. O Miguel, meu marido, entrou na sala e percebeu logo pelo meu olhar.
— Outra vez? — perguntou, já cansado da situação.
— Dizem que têm de lavar o carro. — A minha voz saiu baixa, quase um sussurro.
Ele bufou e sentou-se ao meu lado. — Parece que o carro vale mais do que o neto. — Olhou para o Tomás, que agora fazia um barulho de motor com a boca, alheio ao drama dos adultos.
Não era a primeira vez. Desde que compraram aquele carro novo — um Renault Captur azul-escuro, com estofos em pele e GPS — que tudo girava à volta dele. Era preciso polir, aspirar, evitar riscos. E cada desculpa para não virem cá era sempre por causa do carro: “Está a chover, não queremos sujar”, “O parque aqui é apertado”, “Temos medo que alguém bata”.
No início tentei compreender. Afinal, era um investimento grande para eles. Mas depois de meses a ouvir desculpas, comecei a sentir-me rejeitada. E pior: sentia que estavam a rejeitar o Tomás.
Naquela noite, depois de deitar o Tomás, sentei-me à mesa da cozinha com o Miguel.
— Não aguento mais isto. Ele vai crescer sem avós? — perguntei, a voz embargada.
— Já tentei falar com eles. Dizem sempre que estão cansados ou ocupados. Mas para ir ao café com os amigos ou ao supermercado nunca falta tempo — respondeu ele, amargo.
A verdade é que a relação com os meus sogros nunca foi fácil. A minha sogra sempre foi distante, pouco dada a afetos. O António, meu sogro, era mais simpático mas seguia sempre a mulher. Quando engravidei do Tomás, pensei que tudo mudaria. Que um neto traria alegria e união. Mas parece que trouxe mais distância.
Lembrei-me do Natal passado. Fiz questão de convidá-los para cá jantar. Passei horas na cozinha a preparar bacalhau com natas e rabanadas. Trouxeram um presente para o Tomás — um camião de plástico — mas passaram a noite a falar do carro novo e das prestações do banco. Nem uma foto tiraram com o neto.
No dia seguinte ao telefonema da minha sogra, decidi confrontá-la. Liguei-lhe cedo.
— Olhe, D. Lurdes, queria só dizer-lhe que o Tomás pergunta muito pelos avós. Fica triste quando dizemos que não vêm cá.
Ela suspirou do outro lado da linha.
— Mariana, sabes como é… O António anda cansado e eu também já não tenho paciência para grandes viagens. E agora com o carro novo…
— Mas são só vinte minutos daqui! — interrompi, sem conseguir conter a frustração.
— Pois… mas sabes como é, Mariana. O carro é caro e não queremos andar sempre para trás e para a frente…
Desliguei antes que começasse a chorar. Senti-me pequena, impotente. Como é possível um carro ser mais importante do que um neto?
Os dias passaram e tentei compensar o Tomás com passeios ao parque e videochamadas com os meus pais, que moram em Braga e só vêm cá uma vez por mês. Ele perguntava pelos avós paternos e eu inventava desculpas: “Estão ocupados”, “Foram às compras”.
Uma tarde, ao ir buscar o Tomás ao infantário, encontrei a minha cunhada Sofia à porta.
— Olá Mariana! Tudo bem? — perguntou ela, sorridente.
— Mais ou menos… Os teus pais continuam sem vir cá ver o Tomás — desabafei.
Ela revirou os olhos.
— Nem me fales disso! Para mim também arranjam sempre desculpas. No outro dia disse-lhes para irem lá jantar mas disseram que tinham medo de deixar o carro na rua à noite…
Rimos as duas, mas era um riso triste. Sofia também se sentia posta de parte.
Na semana seguinte houve festa no infantário: “Dia dos Avós”. Cada criança podia levar os avós para uma tarde de jogos e lanche partilhado. O Tomás ficou radiante quando lhe disse que ia tentar convencer os avós a ir.
Falei com o Miguel e decidimos insistir juntos.
— Mãe, era importante para o Tomás… Ele fala tanto em vocês! — disse o Miguel ao telefone.
— Oh filho… Não sei… O parque aí é tão pequeno… E se alguém risca o carro? — respondeu ela.
— Mãe! É só um carro! O teu neto precisa de ti! — gritou ele, perdendo finalmente a paciência.
Houve silêncio do outro lado da linha.
No dia da festa, os avós não apareceram. O Tomás ficou à porta do infantário à espera, com um desenho na mão: dois bonecos de mãos dadas com um menino no meio. Quando percebeu que não vinham, chorou baixinho no meu colo.
Nessa noite chorei também. Senti raiva dos meus sogros mas também uma tristeza funda por ver o meu filho crescer sem laços familiares fortes do lado paterno.
O Miguel tentou animar-me:
— Temos de aceitar que eles são assim… Não vale a pena insistir mais.
Mas eu não conseguia aceitar tão facilmente. Comecei a afastar-me deles também: deixei de ligar, deixei de convidar para aniversários ou festas. O Miguel sentiu-se dividido mas apoiou-me.
Meses depois, recebi uma mensagem da minha sogra: “Podemos passar aí amanhã? O António quer mostrar ao Tomás umas fotos da viagem”.
Fiquei surpreendida mas aceitei. No dia seguinte vieram cá — estacionaram longe para evitar riscos no carro — e ficaram meia hora sentados na sala sem saber bem como interagir com o neto. O António mostrou fotos no telemóvel; a D. Lurdes ficou calada quase todo o tempo.
Quando foram embora senti alívio mas também pena: era tudo tão forçado, tão distante…
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fizemos tudo certo? Será que devia ter lutado mais por esta relação? Ou será que há pessoas incapazes de dar prioridade ao amor em vez das coisas materiais?
E vocês? Já sentiram que objetos ou rotinas se tornaram mais importantes do que as pessoas na vossa família? Como lidaram com isso?