Entre o Campo e a Cidade: O Dilema de um Pai Português
— Não percebes, pai! Eu preciso disto para mim! — gritou Rui, com os olhos marejados, enquanto apertava as chaves da velha carrinha azul que herdou do avô.
O meu coração batia descompassado. Senti-me pequeno, impotente, como se a minha voz não tivesse peso nenhum naquele momento. Olhei para ele, para aquele rapaz feito homem, mas que ainda era o meu menino. A sala parecia encolher à nossa volta, as paredes a testemunhar mais uma discussão entre pai e filho.
— Rui, tu tens tudo aqui. Um quarto confortável, comida na mesa, a tua mãe e eu sempre prontos para te ajudar. Para quê ires para uma casa velha no meio do nada? — tentei argumentar, a voz embargada pela preocupação.
Ele virou-se de costas, passou as mãos pelos cabelos castanhos desgrenhados e suspirou fundo.
— Porque preciso de espaço, pai! Preciso de silêncio, de ar puro… Preciso de me encontrar. Aqui sinto-me sufocado. — A voz dele tremia, mas havia uma determinação que eu nunca tinha visto antes.
Lembrei-me do dia em que o levei pela primeira vez à escola. Ele chorava, agarrado à minha perna. Agora era eu quem queria agarrá-lo e não deixar que partisse. Mas os papéis tinham-se invertido.
A minha mulher, Teresa, entrou na sala nesse instante. Olhou para nós com aquele olhar sábio de quem já viu mais do que eu alguma vez verei.
— Manuel, talvez devêssemos ouvir o Rui — disse ela, pousando uma mão no meu ombro. — Ele não está a pedir para ir para outro país. É só uma casa de campo.
Senti-me traído. Como podia ela apoiar esta loucura? Mas calei-me. Não queria discutir com ela à frente do nosso filho.
— Rui, se é dinheiro que precisas, eu ajudo-te — disse, tentando soar prático. — Podes arranjar um apartamento aqui perto, ou até alugar um quarto em Lisboa. Não precisas de te isolar no meio dos montes.
Ele abanou a cabeça.
— Não é isso, pai. Não é o dinheiro. É… é a vida. Quero acordar com o som dos pássaros, plantar as minhas coisas, sentir que faço parte de algo maior do que esta rotina sem sentido.
As palavras dele ecoaram em mim durante dias. No trabalho, mal conseguia concentrar-me. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu respondia com um sorriso amarelo. Mas por dentro sentia-me a perder o meu filho para um sonho que não compreendia.
Naquela noite, depois do jantar, Teresa sentou-se ao meu lado no sofá.
— Estás magoado — disse ela suavemente.
— Estou assustado — confessei. — E se ele se magoa? E se se sente sozinho? E se… se nunca mais volta?
Ela sorriu tristemente.
— O Rui sempre foi diferente dos outros rapazes da idade dele. Sempre gostou de silêncio, de natureza… Lembras-te quando passava horas a observar os caracóis no jardim?
Assenti em silêncio. Lembrava-me bem.
— Ele precisa de tentar — continuou ela. — Se não resultar, ele volta. Mas se não o deixarmos ir… talvez nunca nos perdoe.
Na manhã seguinte, Rui estava a meter caixas na carrinha quando desci as escadas. O sol nascia por trás das colinas e iluminava-lhe o rosto cansado mas determinado.
— Vais mesmo? — perguntei, tentando esconder as lágrimas.
Ele parou e olhou-me nos olhos.
— Vou, pai. Mas volto sempre que quiseres. Prometo.
Abracei-o com força. Senti o cheiro da terra nas roupas dele, misturado com o perfume barato que usava desde os 16 anos. Quis dizer-lhe tantas coisas: que tinha orgulho nele, que tinha medo por ele, que o amava acima de tudo. Mas só consegui murmurar:
— Cuida de ti.
Os meses passaram devagar. No início ligava-me todos os dias: contava das galinhas que comprou ao senhor António da aldeia vizinha; das noites frias em que ouvia os lobos ao longe; das dificuldades em acender a lareira ou em arranjar água quente.
Depois as chamadas tornaram-se menos frequentes. Um dia ligou-me a chorar: uma tempestade tinha destruído parte do telhado e ele não sabia como consertar. Fui ter com ele nesse mesmo dia. Trabalhámos lado a lado até ao anoitecer, em silêncio primeiro, depois em risos nervosos quando conseguimos pregar a última tábua sem partir mais nada.
Nessa noite jantámos juntos à luz de velas porque a eletricidade ainda não tinha voltado. Ele olhou para mim com gratidão e disse:
— Obrigado por vires, pai.
Senti uma paz estranha naquele momento. Talvez fosse isso ser pai: deixar ir e estar lá quando fosse preciso.
Mas nem tudo foi fácil depois disso. A minha irmã Margarida criticava-me sempre que podia:
— Deixaste o Rui ir viver como um eremita! Achas isso normal? Ele devia era arranjar um emprego decente na cidade!
Eu encolhia os ombros e mudava de assunto. Os vizinhos também cochichavam: diziam que o meu filho era estranho, que devia ter algum problema para querer viver sozinho no campo.
Mas comecei a ver mudanças em mim também. Aos poucos fui percebendo que o sonho do Rui não era uma fuga — era uma busca por sentido numa vida cada vez mais artificial e apressada.
Um dia levei Teresa à casa dele. O jardim estava cheio de flores silvestres e havia tomates a crescer num canteiro improvisado. Rui recebeu-nos com um sorriso largo e um abraço apertado.
— Vês? Ele está feliz — sussurrou Teresa ao meu ouvido.
E estava mesmo. Pela primeira vez em anos vi o meu filho verdadeiramente em paz consigo próprio.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido melhor obrigá-lo a ficar? Ou fiz bem em deixá-lo partir? Quantos pais conseguem realmente aceitar os sonhos dos filhos quando são tão diferentes dos seus?
E vocês? O que fariam no meu lugar?