Entre o Amor e o Silêncio: As Lições de Mariana Sobre Respeito e Limites
— Mariana, não podes continuar a fazer isto! — gritou o Miguel, a voz embargada pela raiva e pelo cansaço. O som da chuva a bater nas janelas da nossa casa em Braga misturava-se com o eco das suas palavras. Eu estava sentada no sofá, as mãos trémulas a apertar a manta que a minha avó me tinha dado quando fiz dezoito anos. Olhei para ele, tentando encontrar no seu rosto aquele rapaz doce por quem me tinha apaixonado há quase quatro anos. Mas só vi mágoa e frustração.
— Fazer o quê, Miguel? Dizer-te o que sinto? Pedir-te para me respeitares? — respondi, a voz mais baixa do que queria, mas firme. Ele virou-se de costas, passou as mãos pelo cabelo e suspirou alto.
— Não é isso… — murmurou. — Só… só queria que confiasses em mim. Que não fosses sempre tão desconfiada.
O silêncio instalou-se entre nós como uma parede invisível. Lembrei-me das palavras da minha avó Rosa: “Mariana, nunca deixes ninguém pisar os teus limites. O amor é bonito, mas não pode ser cego.” Na altura, achei que ela exagerava. Agora, sentia na pele o peso da sua sabedoria.
Miguel e eu conhecemo-nos na faculdade, durante uma manifestação estudantil contra as propinas. Ele era carismático, cheio de ideias e sonhos. Eu era mais reservada, mas deixei-me levar pelo seu entusiasmo. Apaixonámo-nos depressa, talvez depressa demais. No início, tudo era fácil: passeios pelo Gerês, tardes de conversa no café A Brasileira, promessas sussurradas ao ouvido nas noites frias do Minho.
Mas a vida adulta chegou sem avisar. O Miguel arranjou trabalho numa empresa de informática em Guimarães; eu comecei a dar aulas numa escola secundária em Braga. As rotinas mudaram, os horários desencontraram-se. E vieram as pequenas discussões: sobre quem fazia as compras, quem esquecia de arrumar a loiça, quem passava demasiado tempo no telemóvel.
A primeira vez que senti que algo estava errado foi numa noite em que ele chegou tarde sem avisar. Esperei por ele na sala, o jantar arrefecendo na mesa. Quando entrou, cheirava a perfume estranho e trazia um sorriso cansado.
— Estive com o pessoal do trabalho — disse, sem me olhar nos olhos.
— Podias ter avisado — respondi.
Ele encolheu os ombros e foi tomar banho. Fiquei ali sentada, a ouvir a água a correr e a sentir um nó apertado no peito.
Com o tempo, comecei a notar pequenas mentiras: mensagens apagadas do telemóvel, desculpas esfarrapadas para sair sozinho ao fim de semana. Confrontei-o várias vezes, mas ele sempre negava tudo.
— Mariana, estás a imaginar coisas! — dizia ele, impaciente.
Eu queria acreditar nele. Queria mesmo. Mas aquela voz dentro de mim — talvez a voz da minha avó — dizia-me para não ignorar os sinais.
A tensão foi crescendo. As discussões tornaram-se mais frequentes e mais duras. Uma noite, depois de uma discussão particularmente feia sobre uma colega nova do trabalho dele, fugi para casa dos meus pais em Vila Verde. A minha mãe recebeu-me com um abraço apertado e chá quente.
— Filha, tens de pensar em ti — disse ela, acariciando-me o cabelo como quando eu era criança. — O amor não pode ser só sofrimento.
Fiquei lá dois dias, a chorar no quarto onde cresci, rodeada pelos livros antigos e pelas fotografias da infância. Lembrei-me de como sonhava com um amor tranquilo, daqueles que vemos nos filmes antigos portugueses. Mas a minha realidade era feita de gritos e silêncios.
Quando voltei para casa, encontrei o Miguel sentado à mesa da cozinha, os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Desculpa — disse ele, num sussurro. — Não quero perder-te.
Abracei-o com força, mas dentro de mim sabia que algo se tinha partido.
Tentámos recomeçar. Fomos a um terapeuta de casal em Braga — a Dra. Teresa era paciente e ouvia-nos sem julgar. Falámos sobre limites, sobre respeito mútuo. Eu disse-lhe que precisava de sentir que podia confiar nele; ele disse-me que se sentia sufocado pelas minhas dúvidas.
Durante algum tempo pareceu funcionar. Voltámos aos passeios pelo rio Cávado, às noites de cinema em casa. Mas bastou um pequeno deslize — uma mensagem suspeita no telemóvel dele — para tudo voltar ao início.
Naquela noite chuvosa em que tudo desabou, percebi finalmente o que a minha avó queria dizer quando falava de limites. Não era só sobre o outro: era sobre mim mesma. Sobre não permitir que o medo da solidão me fizesse aceitar menos do que merecia.
— Miguel — disse eu, com lágrimas nos olhos — eu amo-te. Mas amo-me mais.
Ele ficou parado à minha frente, sem saber o que dizer. Peguei na mala e saí de casa sem olhar para trás.
Os dias seguintes foram um nevoeiro denso. Dormi pouco, comi menos ainda. Os meus pais tentaram animar-me; os amigos ligavam todos os dias. Mas só o tempo foi capaz de aliviar aquela dor surda no peito.
Voltei a dar aulas com mais dedicação do que nunca. Os alunos distraíam-me dos meus próprios pensamentos; as conversas com colegas ajudavam-me a sentir-me menos sozinha. Aos poucos fui reconstruindo a minha vida: inscrevi-me num curso de cerâmica na Casa das Artes; comecei a correr ao fim da tarde pelo Bom Jesus; voltei a sair com amigas para jantar francesinha e rir até doer a barriga.
Um dia encontrei o Miguel na rua do Souto. Estava diferente: mais magro, olhar triste.
— Mariana… — começou ele.
Sorri-lhe com ternura e tristeza ao mesmo tempo.
— Espero que estejas bem — disse-lhe apenas.
Ele assentiu e afastou-se devagar. Senti um alívio estranho: já não doía como antes.
Hoje olho para trás e percebo quanto cresci desde então. Aprendi que o amor verdadeiro começa dentro de nós; que ninguém tem o direito de ultrapassar os nossos limites; que respeitar-se é o primeiro passo para ser feliz com outro alguém.
Às vezes pergunto-me: quantas pessoas continuam presas em relações onde se anulam por medo de ficar sozinhas? E tu? Já te esqueceste dos teus próprios limites por amor?