Entre o Amor e o Silêncio: A História de Olívia
— Já chega, mãe! Eu não aguento mais! — gritei, sentindo a garganta arder e as lágrimas escorrerem pelo rosto. O eco da minha voz ainda pairava no ar quando ouvi o estrondo da porta do meu quarto a fechar-se com força. Do outro lado, a minha mãe continuava a disparar acusações: — Ingrata! Depois de tudo o que fizemos por ti! Achas que é fácil ser tua mãe?
A minha respiração estava descompassada. Sentei-me na cama, abraçando os joelhos ao peito, tentando abafar os soluços. O quarto parecia encolher à minha volta, as paredes cobertas de posters antigos e prateleiras cheias de livros que nunca escolhi. Tudo ali era uma extensão da vontade dos meus pais — até os lençóis cor-de-rosa que eu detestava.
Desde criança, fui a menina perfeita. Olívia, a filha exemplar dos Costa. Os meus pais, Clara e António, eram conhecidos no bairro de Benfica por serem trabalhadores e exigentes. A minha mãe era professora primária, o meu pai engenheiro civil. Cresci rodeada de tudo o que o dinheiro podia comprar: brinquedos caros, roupas de marca, viagens a Espanha e França nas férias. As minhas colegas invejavam-me — pelo menos era isso que diziam.
Lembro-me de um dia, no recreio da escola, a Lena aproximou-se de mim. Ela era diferente das outras: cabelo curto, sempre despenteado, e um olhar que parecia ver através das pessoas.
— Não te invejo nada, Olívia — disse ela, enquanto mordia uma maçã. — Com pais como os teus, eu fugia de casa.
Na altura, não percebi o que ela queria dizer. Só mais tarde, quando comecei a sentir o peso das expectativas dos meus pais em cada decisão — desde o curso que devia escolher até aos amigos com quem podia sair — é que entendi.
Aos 16 anos, quis inscrever-me nas aulas de teatro da escola. Sonhava ser atriz, perder-me em personagens que não fossem eu própria. Mas a minha mãe foi taxativa:
— Teatro? Isso não é profissão para ninguém! Vais para Ciências e Tecnologia, como o teu pai.
O meu pai limitou-se a acenar com a cabeça. Nunca se opunha à minha mãe — pelo menos não na minha frente.
Os anos passaram e fui-me moldando às vontades deles. Entrei em Engenharia no Técnico, mesmo sem paixão. Os meus dias eram uma sucessão de aulas, explicações e jantares silenciosos em família. O silêncio era ensurdecedor — cada um perdido nos seus pensamentos ou nos telemóveis.
Aos 21 anos, conheci o Miguel numa festa da faculdade. Ele era diferente: espontâneo, risonho, cheio de sonhos próprios. Começámos a namorar às escondidas porque sabia que os meus pais nunca aceitariam alguém “sem futuro” — como diziam sobre qualquer pessoa fora do círculo deles.
Uma noite, depois de um jantar particularmente tenso em casa dos meus pais — onde a minha mãe criticou o meu cabelo “demasiado comprido” e o meu pai perguntou se já tinha pensado em fazer um mestrado — fugi para casa do Miguel. Senti-me livre pela primeira vez em anos.
Mas a liberdade tem um preço. Quando finalmente contei aos meus pais sobre o Miguel, a minha mãe explodiu:
— Depois de tudo o que fizemos por ti! Dás-nos esta vergonha? Um rapaz sem ambições? Vais acabar a viver entre lixo!
As palavras dela ficaram-me gravadas na pele como cicatrizes. Voltei para casa naquela noite só para ouvir mais acusações. Foi aí que tudo desabou.
— Eu já não quero viver entre lixo! — gritei-lhe, incapaz de conter a raiva e a dor. — Vocês disseram-me para ser dona desta casa, mas nunca me deixaram ser dona da minha vida!
A minha mãe saiu do quarto aos gritos, batendo com a porta tão forte que os quadros caíram da parede. O meu pai ficou parado no corredor, sem saber o que fazer.
Nos dias seguintes, a casa tornou-se um campo de batalha silencioso. A minha mãe ignorava-me; o meu pai tentava apaziguar as coisas com frases feitas:
— A tua mãe só quer o melhor para ti…
Mas eu já não conseguia ouvir mais justificações.
Comecei a passar mais tempo fora de casa: estudava na biblioteca até tarde, jantava com colegas ou ficava na casa do Miguel. Cada regresso era um confronto com olhares frios e silêncios pesados.
Um dia, ao chegar a casa mais cedo do que o habitual, ouvi os meus pais a discutir na cozinha:
— Não podemos continuar assim, Clara! — dizia o meu pai num tom baixo mas firme. — A Olívia tem direito à vida dela.
— E se ela estraga tudo? — respondeu a minha mãe entre soluços. — Eu só quero protegê-la…
Senti uma pontada no peito. Pela primeira vez percebi que o medo da minha mãe não era só controlo — era também amor distorcido pelo receio de me ver sofrer.
Naquela noite, sentei-me à mesa com eles. O silêncio era quase insuportável até que decidi falar:
— Eu sei que querem o melhor para mim… Mas preciso de errar sozinha. Preciso de viver à minha maneira.
A minha mãe chorou baixinho. O meu pai olhou para mim com tristeza e orgulho misturados.
As semanas seguintes foram um processo lento de reconstrução. Houve discussões, lágrimas e pedidos de desculpa — mas também pequenos gestos de aceitação: um jantar em família sem críticas, uma mensagem da minha mãe a perguntar como estava o Miguel.
Hoje vivo com o Miguel num pequeno apartamento em Almada. Trabalho numa livraria enquanto termino o curso à noite. Não é uma vida perfeita nem fácil — mas é finalmente minha.
Às vezes ainda sinto saudades da casa onde cresci, do cheiro do pão quente ao domingo de manhã ou do som da chuva nas janelas antigas. Mas sei que nunca poderia voltar atrás sem perder quem sou agora.
Pergunto-me muitas vezes: quantas Olívias existem por aí, presas entre o amor dos pais e o desejo de serem livres? Será possível amar sem sufocar? Gostava de saber o que vocês pensam…