Entre o Amor e o Sangue: O Dia em que a Minha Avó Fechou a Porta ao Meu Futuro
— Se eu quiser, ele nunca mais põe os pés nesta casa! — A voz da minha avó ecoou pela cozinha, tão fria quanto o chão de pedra sob os meus pés. Senti o coração apertar-se no peito, como se cada palavra dela fosse uma pedra atirada contra mim. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a tensão no ar, tornando impossível respirar fundo.
— Avó, por favor… — tentei, mas ela já me cortava com aquele olhar duro, o mesmo que usava quando eu era criança e fazia asneiras.
— Não me peças para aceitar esse teu… — hesitou, como se o nome dele lhe queimasse a língua — esse teu rapaz. Aqui em casa mando eu! — E virou-me as costas, agarrando-se ao avental como se fosse um escudo.
Chamo-me Mariana e cresci nesta aldeia do interior de Portugal, onde todos conhecem todos e os segredos são guardados entre paredes de pedra e olhares de soslaio. Fui criada pela minha avó, Dona Amélia, desde que os meus pais morreram num acidente de carro quando eu tinha sete anos. Ela foi mãe, pai e avó — tudo ao mesmo tempo. E talvez por isso, sempre sentiu que tinha direito a decidir tudo sobre a minha vida.
Conheci o Miguel numa festa da aldeia vizinha. Ele era diferente dos rapazes daqui: falava baixo, ria-se com facilidade e tinha sonhos maiores do que as serras que nos rodeiam. Apaixonei-me por ele como quem se atira ao rio sem saber nadar. Quando lhe contei à avó que estava apaixonada, ela apenas resmungou: “Esses forasteiros só querem saber de levar as nossas raparigas.”
O tempo passou e o Miguel tornou-se parte da minha vida, mas nunca da vida da minha avó. Ela recusava-se a dizer o nome dele, chamando-lhe sempre “o teu onzito” ou “esse teu”. Quando ele vinha cá a casa, ela arranjava sempre desculpas para sair ou ficava na cozinha a bater panelas com mais força do que o necessário.
Uma vez, tentei aproximá-los. Preparei um jantar especial, pus a mesa com a toalha de linho que era só para ocasiões importantes. O Miguel trouxe flores do campo para ela. Quando lhas entregou, ela olhou para ele como se fossem urtigas e disse:
— Não preciso de flores para me alegrar o dia.
O Miguel sorriu, sem jeito, e eu senti-me pequenina, envergonhada por não conseguir construir uma ponte entre os dois mundos que amava.
As discussões tornaram-se rotina. Sempre que falava em casamento, a avó mudava de assunto ou começava a falar dos tempos em que tudo era diferente. Um dia, perdi a paciência:
— Avó, porque é que não gostas do Miguel? Ele nunca te fez mal!
Ela ficou calada durante uns segundos eternos. Depois respondeu:
— Não é dele que não gosto. É do medo de te perder. Se te casas com ele, vais-te embora e eu fico sozinha nesta casa cheia de memórias.
As palavras dela caíram sobre mim como chuva gelada. Pela primeira vez vi a solidão nos olhos da mulher que sempre foi uma fortaleza. Senti culpa por querer ser feliz à minha maneira.
Mas o tempo não perdoa e o amor também não espera. O Miguel pediu-me em casamento junto ao rio onde demos o nosso primeiro beijo. Disse-lhe sim, com lágrimas nos olhos — de felicidade e de medo.
Quando contei à avó, ela explodiu:
— Se eu quiser, ele nunca mais entra nesta casa! — gritou outra vez, batendo com a mão na mesa.
— Então vais escolher entre mim e ele? — perguntei-lhe, com a voz a tremer.
Ela não respondeu. Virou-me as costas e foi fechar-se no quarto.
Nessa noite não dormi. Fiquei sentada na cama a olhar para as sombras nas paredes, ouvindo os passos dela no corredor. Pensei em fugir com o Miguel, pensei em desistir de tudo. Pensei até em ficar ali para sempre, presa entre as paredes daquela casa onde fui feliz e infeliz tantas vezes.
No dia seguinte, tentei falar com ela outra vez. Encontrei-a no quintal a arrancar ervas daninhas com uma força desnecessária.
— Avó…
Ela não olhou para mim.
— Se fores embora com ele, não voltes mais — disse baixinho, mas cada palavra era um golpe.
Chorei ali mesmo, entre as couves e as cebolas. Senti-me egoísta por querer sair daquele mundo pequeno para construir um novo com o Miguel. Mas também senti raiva por ela não tentar sequer conhecer o homem que eu amava.
Os dias passaram lentos e pesados. O Miguel tentava animar-me:
— Ela vai acabar por aceitar… é só dar tempo.
Mas eu sabia que o tempo nem sempre cura tudo. Às vezes só faz crescer as raízes do orgulho.
Chegou o dia do casamento civil. Fomos só nós dois e duas testemunhas à conservatória da vila. Não houve festa nem arroz atirado ao ar. Quando voltei à aldeia para buscar as minhas coisas, encontrei a porta fechada à chave.
Bati uma vez. Duas vezes. Três vezes.
— Vai-te embora! — ouvi a voz dela do outro lado da porta — Aqui já não tens casa!
Senti-me órfã outra vez.
Fui viver com o Miguel para um pequeno apartamento na cidade. Os primeiros tempos foram difíceis: sentia falta do cheiro do pão quente pela manhã, das conversas à lareira nas noites frias de inverno… mas acima de tudo sentia falta dela.
Passaram meses sem nos falarmos. No Natal mandei-lhe uma carta, mas nunca tive resposta. A dor era tanta que às vezes acordava a meio da noite a chorar baixinho para não acordar o Miguel.
Um dia recebi um telefonema da vizinha:
— Mariana, a tua avó está doente… anda cá depressa.
Corri para a aldeia como quem foge da própria sombra. Encontrei-a na cama, mais pequena do que nunca, os olhos perdidos no tecto.
— Avó…
Ela olhou para mim e vi lágrimas nos olhos dela pela primeira vez desde que me lembro.
— Desculpa… — murmurou — Só queria proteger-te…
Abracei-a como quem agarra uma vida inteira perdida entre silêncios e teimosias.
Hoje vivo dividida entre dois amores: o homem que escolhi e a mulher que me criou. Sei que nunca terei tudo o que quero ao mesmo tempo. Mas pergunto-me: quantos de nós já tivemos de escolher entre o sangue e o coração? Será possível alguma vez curar todas as feridas deixadas pelo orgulho?