Entre o Amor e o Orgulho: O Dia em que Meu Mundo Desabou
— Não podes continuar assim, Mariana! — a voz do Rui ecoou pela sala, carregada de uma urgência que me fez estremecer. — Já passaram três anos. Três anos sem falares com a tua mãe. Isto está a destruir-te… e a nós também.
Senti o peito apertar, como se cada palavra dele fosse uma pedra atirada contra o vidro frágil do meu orgulho. Olhei para ele, olhos marejados, mas não consegui responder. O silêncio era o meu escudo, o único que me restava desde aquela noite em que tudo desabou.
Lembro-me como se fosse ontem. Era véspera de Natal, e a casa da minha mãe, Dona Lurdes, estava cheia de vozes, risos e o cheiro doce do arroz-doce que só ela sabia fazer. Mas bastou um comentário dela — “Se tivesses escolhido outro caminho, Mariana, talvez estivesses melhor de vida” — para incendiar tudo. O meu orgulho ferido respondeu mais alto do que devia. Gritei, ela gritou de volta. Palavras duras foram ditas, portas foram batidas. Desde então, nunca mais nos falámos.
Rui conheceu-me já com esta ferida aberta. No início, respeitou o meu silêncio, mas agora, depois de termos perdido o nosso primeiro bebé há seis meses, ele acredita que preciso da minha mãe mais do que nunca. Talvez precise mesmo, mas como perdoar quem nos magoou tão fundo?
— Mariana, por favor… — Rui ajoelhou-se à minha frente, segurando as minhas mãos geladas nas dele. — Eu vejo o quanto sofres. Não é justo para ti… nem para nós. A tua mãe também sofre. Já viste como ela te olha na missa? Como pergunta por ti à tua irmã?
Desviei o olhar. A minha irmã mais nova, Inês, era o elo entre mim e Dona Lurdes. Sempre me ligava depois de visitar a nossa mãe:
— Ela sente tanto a tua falta, mana…
— Não quero falar sobre isso, Inês.
Mas agora Rui estava ali, olhos suplicantes, e eu sentia-me encurralada entre dois amores: o da minha mãe e o do meu marido.
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do nosso quarto minúsculo em Almada, ouvindo os carros ao longe e pensando em tudo o que perdi: a infância feliz no bairro da Graça, as tardes de verão na praia da Costa com a minha mãe a ensinar-me a nadar, as noites frias em que ela me tapava com o cobertor e me dizia ao ouvido: “És a minha menina”.
Mas também me lembrei das críticas constantes, das comparações com a Inês — sempre mais bonita, mais estudiosa, mais “filha perfeita”. Lembrei-me do dia em que decidi largar o curso de Direito para seguir Artes Plásticas e do olhar de desilusão da minha mãe.
No dia seguinte, Rui saiu cedo para o trabalho. Fiquei sozinha com os meus pensamentos e uma chávena de café frio nas mãos. O telefone tocou. Era Inês.
— Mana…
— O que foi agora?
— A mãe caiu ontem à noite. Nada grave, mas ficou tão assustada… Só queria ouvir a tua voz.
Senti um nó na garganta. Queria correr até ela, abraçá-la como quando era criança e tinha medo do escuro. Mas havia tanto orgulho entre nós…
Naquela tarde fui até ao atelier onde dou aulas de pintura a crianças do bairro. Uma das mães veio buscar a filha mais cedo e perguntou:
— Mariana, tens família cá?
— Tenho… mas estamos afastadas.
Ela sorriu com tristeza:
— Não há nada mais importante do que família. Às vezes é preciso engolir o orgulho.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. Rui continuava a insistir:
— Mariana, não quero ver-te assim. Não quero perder-te para esta mágoa.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o assunto, Rui saiu de casa batendo a porta com força. Fiquei sozinha no sofá, abraçada às minhas pernas, sentindo-me uma criança perdida outra vez.
Peguei no telefone e disquei o número da minha mãe. O coração batia tão forte que pensei que ia desmaiar.
— Estou? — A voz dela soou frágil do outro lado.
— Mãe… sou eu.
Silêncio.
— Mariana? Minha filha…
A voz dela tremeu e eu comecei a chorar.
— Desculpa… desculpa por tudo.
Ela soluçou:
— Eu também errei… Senti tanto a tua falta.
Ficámos ali, as duas a chorar ao telefone como duas crianças perdidas no tempo.
No fim-de-semana seguinte fui visitá-la. A casa parecia mais pequena do que me lembrava. Dona Lurdes estava sentada na poltrona antiga da sala, os cabelos mais brancos do que nunca. Abraçámo-nos em silêncio durante minutos eternos.
Conversámos durante horas sobre tudo: sobre o passado, sobre as mágoas, sobre o bebé que perdi e sobre os sonhos que ainda tinha medo de partilhar.
Quando voltei para casa naquela noite, Rui estava à minha espera na varanda.
— E então?
Sorri-lhe entre lágrimas:
— Acho que finalmente voltei para casa.
Ele abraçou-me com força e sussurrou:
— Estou tão orgulhoso de ti.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos o orgulho falar mais alto do que o amor? Será que vale mesmo a pena perder anos preciosos por palavras ditas num momento de raiva? E vocês… já tiveram de escolher entre o orgulho e a família?