Entre o Amor e o Orgulho: O Dia em que a Minha Família se Desfez
— Não, Mariana. Não vou ajudar a tua irmã enquanto tu não aceitares aquilo que te pedi. — A voz do Rui ecoou pela cozinha, fria e cortante, como se cada palavra fosse uma faca a rasgar o ar.
Fiquei ali, parada, com as mãos trémulas a segurar a chávena de chá que já nem sentia quente. O relógio da parede marcava quase meia-noite, mas o sono era impossível. A minha irmã, Sofia, tinha ligado há pouco, a chorar. O marido dela tinha perdido o emprego e, com dois filhos pequenos, estavam à beira de perder a casa. Ela precisava de ajuda — precisava de nós. Mas Rui, o homem com quem partilhava a vida há quase quinze anos, recusava-se a estender a mão sem impor condições.
— Rui, por favor… Ela é minha irmã! — supliquei, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair.
Ele levantou-se da cadeira e aproximou-se de mim, os olhos duros. — E eu sou teu marido. Quantas vezes já te pedi para falares com ela sobre aquele dinheiro que nos deve? Quantas vezes Mariana? Ela nunca nos pagou o empréstimo do ano passado! Agora aparece outra vez, como se nada fosse…
O silêncio caiu entre nós como uma sentença. Eu sabia que ele tinha razão, mas também sabia que Sofia não tinha culpa de tudo o que lhe acontecia. A vida dela nunca foi fácil. Depois da morte dos nossos pais, fui eu quem ficou responsável por ela. Sempre senti que era minha obrigação protegê-la, mesmo quando isso significava sacrificar a minha própria paz.
Naquela noite, depois de Rui se fechar no quarto sem me dar um beijo de boa noite, sentei-me sozinha na sala. Peguei no telefone e escrevi uma mensagem à Sofia: “Preciso de pensar. Falo contigo amanhã.” Mas não dormi. Passei horas a reviver cada momento da nossa infância — as brincadeiras no quintal da avó em Viseu, as noites em que ela se enfiava na minha cama com medo dos trovões, os dias em que prometi nunca a abandonar.
No dia seguinte, acordei com o som das crianças a correrem pelo corredor. O Rui já tinha saído para o trabalho. Preparei o pequeno-almoço em silêncio, sentindo o peso da decisão que tinha pela frente. Quando finalmente liguei à Sofia, ouvi-lhe a voz cansada do outro lado.
— Mariana… desculpa estar sempre a pedir-te isto. Eu sei que já te devo tanto…
— Não digas isso — interrompi-a, tentando manter a voz firme. — És minha irmã. Mas… o Rui está magoado. Ele sente que estás sempre a pedir e nunca consegues retribuir.
Houve um silêncio pesado.
— Eu sei… — murmurou ela. — Mas eu não tenho mais ninguém.
Nesse momento, senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Raiva do Rui por ser tão inflexível, raiva da Sofia por nunca conseguir sair daquele ciclo de dificuldades, raiva de mim própria por estar sempre no meio dos dois.
À noite, quando Rui chegou a casa, tentei falar com ele calmamente.
— Rui, precisamos de conversar.
Ele pousou as chaves na mesa e olhou para mim com cansaço.
— Já sei ao que vens. Mas não vou mudar de ideias, Mariana. Ou falas com ela sobre o dinheiro antigo ou não há mais ajudas.
Senti-me encurralada. Sabia que se pressionasse demasiado a Sofia podia perder a relação com ela para sempre. Mas se desafiasse o Rui… bem, já sabia como isso acabava: semanas de silêncio e ressentimento.
— E se eu te prometer que vou falar com ela? — arrisquei.
Ele abanou a cabeça.
— Não quero promessas. Quero resultados.
Nessa noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me na varanda e chorei baixinho para ninguém ouvir. Lembrei-me do dia em que casei com o Rui: ele era carinhoso, divertido, fazia-me sentir segura. Mas nos últimos anos tudo mudou. O trabalho dele tornou-o mais frio, mais calculista. E eu? Senti-me cada vez mais pequena dentro daquela casa.
No fim de semana seguinte, fui visitar a Sofia sem dizer nada ao Rui. Levei-lhe um saco com comida e algum dinheiro do meu próprio ordenado — dinheiro que estava destinado às férias das crianças este verão.
— Mariana… não devias fazer isto — disse ela, abraçando-me com força.
— Não te preocupes — menti. — Vai correr tudo bem.
Mas não correu. Quando Rui descobriu — porque sempre descobre — fez uma cena como nunca antes tinha visto.
— Traíste-me! — gritou ele na sala, enquanto os miúdos choravam no quarto ao lado. — Disseste que ias resolver isto e foste pelas minhas costas!
— Ela é minha irmã! O que querias que eu fizesse? Deixá-la passar fome?
— Queria que fosses minha mulher antes de seres irmã dela! — atirou ele, magoando-me mais do que qualquer bofetada poderia fazer.
A partir desse dia, algo se partiu entre nós. As conversas tornaram-se frias e formais; os jantares em silêncio; as noites passadas cada um no seu canto da cama. Comecei a sentir-me uma estranha na minha própria casa.
A Sofia acabou por conseguir um trabalho temporário numa loja de roupa e pouco a pouco foi-se reerguendo. Mas entre mim e o Rui ficou um muro invisível que nunca mais conseguimos derrubar.
Um ano depois daquela noite fatídica, sento-me agora nesta mesma varanda onde chorei tantas vezes e pergunto-me: valeu a pena? Será possível amar duas famílias ao mesmo tempo sem nos perdermos pelo caminho?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde iriam por alguém que amam?