Entre o Amor e o Limite: O Desafio de Educar Miguel
— Não, Miguel! Já disse que não vais levar o tablet para a mesa! — gritei, sentindo a voz tremer mais de exaustão do que de autoridade. O olhar dele, tão escuro e intenso como o do pai, devolveu-me um desafio silencioso. Tinha apenas oito anos, mas já sabia como manipular cada gesto meu, cada hesitação.
O Rui entrou na cozinha nesse momento, pousando as chaves com força sobre a bancada. — Deixa lá o miúdo, Ana. Ele está cansado, teve um dia difícil na escola.
Senti o sangue ferver. — E eu? Não tive um dia difícil? Não sou eu que passo horas a tentar convencê-lo a fazer os trabalhos de casa, a comer legumes, a largar os ecrãs? — A minha voz saiu mais alta do que queria. Miguel aproveitou-se da distração e agarrou o tablet, fugindo para a sala.
— Vês? — atirei ao Rui, com lágrimas a ameaçarem-me os olhos. — Estamos a perder o controlo.
Ele suspirou, cansado. — Ana, não podemos ser tão duros. Lembras-te do quanto lutámos para ter o Miguel? Não quero que ele sinta que lhe falta alguma coisa.
Como podia esquecer? Foram anos de consultas, exames, esperanças desfeitas mês após mês. Quando finalmente engravidei, aos 38 anos, parecia um milagre. O Miguel nasceu prematuro, tão pequeno e frágil que tive medo de lhe pegar ao colo. Jurei naquele momento que nunca lhe faltaria nada. Mas agora percebia que talvez lhe estivesse a faltar exatamente aquilo que mais precisava: limites.
A minha sogra, Dona Lurdes, nunca perdia uma oportunidade para me lembrar disso. — O menino faz o que quer porque vocês deixam — dizia ela, com aquele tom de quem sabe tudo sobre a vida. — No meu tempo, bastava um olhar do pai para os meus filhos se portarem bem.
Eu mordia a língua para não responder. O Rui era filho único e sempre foi mimado pela mãe. Talvez por isso tivesse tanta dificuldade em dizer “não” ao Miguel.
Naquela noite, depois de adormecer o Miguel (com uma história e três promessas de que amanhã podia jogar PlayStation), sentei-me na varanda com um copo de vinho. O Rui juntou-se a mim em silêncio.
— Achas que estamos a falhar? — perguntei-lhe, olhando para as luzes da cidade lá em baixo.
Ele demorou a responder. — Não sei. Só sei que não quero magoá-lo. Mas também não quero criar um filho egoísta.
As palavras dele ecoaram em mim durante dias. Comecei a reparar em pequenos sinais: Miguel recusava-se a arrumar os brinquedos, fazia birras quando não conseguia o que queria, respondia-me com arrogância. Um dia, atirou o prato ao chão porque não era massa ao jantar.
— Basta! — gritei, surpreendendo até a mim mesma. — Se não sabes respeitar quem te faz o jantar, vais para o quarto sem sobremesa!
Ele olhou-me como se eu fosse uma estranha. Chorou, gritou, bateu com a porta. Senti-me péssima. O Rui tentou consolar-me: — Ele vai perceber. Temos de ser firmes.
Mas no dia seguinte, Dona Lurdes apareceu sem avisar e trouxe-lhe um saco cheio de doces e brinquedos novos.
— O menino está triste! — disse ela, lançando-me um olhar acusador. — Não se educa uma criança com castigos.
Senti vontade de gritar. Em vez disso, fechei-me na casa de banho e chorei baixinho.
Os dias passaram entre pequenas vitórias e grandes derrotas. Às vezes conseguia que Miguel me ajudasse a pôr a mesa ou arrumasse os sapatos sem reclamar. Outras vezes sentia-me uma estranha na minha própria casa, rodeada por brinquedos espalhados e birras constantes.
Uma tarde, fui chamada à escola. A professora explicou-me que Miguel tinha empurrado um colega porque este não quis partilhar os lápis de cor.
— Ele tem dificuldade em aceitar um “não” — disse ela com delicadeza. — Talvez precise de aprender a lidar com frustrações.
Saí da escola com o coração apertado. Era tudo culpa minha? Tinha estragado o meu filho por amor?
Nessa noite, sentei-me com Miguel na cama dele.
— Filho, sabes porque é importante ouvir “não” às vezes?
Ele encolheu os ombros.
— Porque nem sempre podemos ter tudo o que queremos. E quando aprendemos isso, tornamo-nos mais fortes e felizes.
Ele olhou para mim com aqueles olhos grandes e inocentes.
— Mas tu e o pai dão-me tudo porque gostam de mim…
Sorri-lhe com tristeza.
— Damos-te tudo porque te amamos. Mas amar também é ensinar-te a esperar, a partilhar e a respeitar os outros.
Miguel ficou calado durante uns segundos e depois abraçou-me com força.
Na semana seguinte, começámos pequenas mudanças: horários para os ecrãs, tarefas simples em casa, elogios quando colaborava e consequências quando desrespeitava as regras. O Rui apoiou-me mais do que nunca; até Dona Lurdes começou a perceber que talvez estivéssemos certos.
Não foi fácil. Houve lágrimas (minhas e dele), discussões com o Rui e muitos momentos em que duvidei de mim mesma. Mas aos poucos comecei a ver mudanças: Miguel tornou-se mais paciente, começou a pedir desculpa quando errava e até fez um desenho para oferecer ao colega da escola.
Hoje olho para ele e vejo um menino feliz — não porque tem tudo o que quer, mas porque começa a perceber o valor das coisas e das pessoas à sua volta.
Às vezes pergunto-me: será possível amar demais um filho? Ou será que amar é precisamente encontrar esse equilíbrio entre dar e ensinar a esperar?
E vocês? Já sentiram este medo de falhar como pais? Como encontram esse equilíbrio entre amor e limites?