Entre o Amor e o Julgamento: A História de um Pai Solteiro Português
— Pai, não podes mesmo faltar hoje? — A voz do Tiago, o meu filho mais velho, soava tensa, quase a implorar. Eu olhava para ele, com os olhos cansados de quem já não dorme direito há semanas. O relógio marcava 6h45 da manhã e eu já sentia o peso do dia inteiro sobre os ombros.
— Tiago, sabes que se eu faltar outra vez ao trabalho, o senhor Álvaro despede-me. E depois? Como é que pagamos a renda? — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo o nó na garganta.
A Inês, com apenas oito anos, já estava sentada à mesa da cozinha, a brincar com o pão torrado. O João e a Mariana ainda dormiam. Desde que a mãe deles nos deixou — foi embora para França atrás de um novo amor e nunca mais olhou para trás — tudo ficou mais difícil. Fiquei sozinho com quatro filhos e um salário mínimo. Não havia avós por perto, nem tios disponíveis. Só eu.
Naquela manhã, a Mariana estava com febre. Não podia ir à escola. Liguei para a minha irmã, mas ela estava de turno no hospital. Liguei para a vizinha do lado, mas ela tinha ido ao mercado. Olhei para o Tiago, com 15 anos feitos há pouco tempo.
— Ficas tu a tomar conta deles até eu voltar ao almoço? — perguntei, mais como pedido de desculpa do que como ordem.
Ele assentiu, mas vi o medo nos olhos dele. Era um miúdo responsável, mas ainda era só isso: um miúdo.
Saí de casa com o coração apertado. No trabalho, mal conseguia concentrar-me. O telefone tocou várias vezes, mas era sempre para resolver problemas da fábrica. Só queria ouvir que estava tudo bem em casa.
Quando cheguei ao almoço, encontrei a Mariana no sofá, pálida mas sorridente. O Tiago tinha-lhe dado chá e ficado ao lado dela. Senti-me aliviado. Mas essa paz durou pouco.
Dois dias depois, bateram à porta. Era a Dona Lurdes, assistente social da Junta de Freguesia.
— Senhor Ricardo, recebemos uma denúncia anónima sobre possível negligência das crianças — disse ela, com aquele tom frio que me gelou o sangue.
O Tiago ficou imóvel ao meu lado. A Inês começou a chorar baixinho.
— Negligência? Eu faço tudo pelos meus filhos! — gritei, sem conseguir controlar as lágrimas.
A Dona Lurdes olhou-me nos olhos:
— Compreendo que seja difícil… Mas deixar um menor responsável por três irmãos mais novos pode ser considerado negligência grave.
Senti o chão fugir-me dos pés. O João abraçou-se à minha perna.
— Pai, eles vão-nos levar? — sussurrou ele.
Foram semanas de angústia. Tive de ir ao tribunal. O Ministério Público queria saber se eu era capaz de garantir o bem-estar dos meus filhos. O Tiago foi chamado a depor. Vi-o tremer na cadeira dos testemunhos.
— O meu pai faz tudo por nós — disse ele com a voz embargada. — Ele só me deixou tomar conta dos meus irmãos porque não tinha outra hipótese…
A juíza olhou para mim com severidade:
— Senhor Ricardo, percebe que isto podia ter acabado mal? E se a sua filha piorasse? E se acontecesse um acidente?
Eu sabia que tinha razão. Mas também sabia que não tinha escolha.
A minha irmã tentou ajudar:
— Meritíssima, o Ricardo é um bom pai! Ele só precisa de apoio…
Mas os serviços sociais insistiam: “As crianças precisam de estabilidade.”
Os vizinhos começaram a cochichar no prédio:
— Lá vai aquele pai solteiro… — ouvi uma vez no elevador.
A Inês começou a ter pesadelos. O João fazia xixi na cama outra vez. Eu sentia-me cada vez mais sozinho e derrotado.
Uma noite, sentei-me à mesa da cozinha com o Tiago.
— Achas que sou um mau pai? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ele olhou para mim, olhos cheios de lágrimas:
— Não és mau pai… Só estás cansado.
Chorei ali mesmo, sem vergonha.
No tribunal, a decisão foi adiada várias vezes. Os assistentes sociais vinham visitar-nos todas as semanas. Eu tentava mostrar-lhes que conseguia dar conta do recado: as camas feitas, comida na mesa, trabalhos de casa feitos. Mas sentia sempre que não era suficiente.
Uma tarde, depois da escola, a Inês chegou a casa com um papel na mão:
— Pai, hoje desenhei a nossa família na aula… — mostrou-me um desenho colorido: eu no meio, rodeado pelos quatro filhos. Todos de mãos dadas.
Guardei aquele desenho como se fosse um talismã.
Finalmente chegou o dia da decisão. No tribunal estavam todos: eu, os meus filhos, a minha irmã e até alguns vizinhos que vieram apoiar-me.
A juíza falou durante longos minutos sobre os perigos da negligência parental e sobre as dificuldades dos pais solteiros em Portugal. Depois olhou para mim:
— Senhor Ricardo… Não vou retirar-lhe os seus filhos. Mas vai ter acompanhamento regular dos serviços sociais e terá de frequentar sessões de apoio parental.
Senti as pernas fraquejarem de alívio e cansaço.
Quando saímos do tribunal, abracei os meus filhos como nunca antes tinha feito.
Mas aquela ferida ficou aberta: o medo constante de ser julgado por quem não conhece a nossa luta diária; a vergonha de pedir ajuda; a raiva de uma sociedade que exige perfeição aos pais sem lhes dar condições para serem perfeitos.
Hoje continuo a lutar todos os dias: acordo cedo, faço marmitas para todos, ajudo nos trabalhos de casa e tento não falhar no trabalho. Às vezes sinto que estou sempre à beira do abismo — basta um pequeno erro para perder tudo.
Pergunto-me muitas vezes: quantos pais vivem assim em silêncio? Quantos são julgados por decisões desesperadas? Será justo exigir tanto quando damos tudo o que temos?
E vocês? Acham que fui negligente… ou apenas humano?