Entre o Amor e o Interesse: A Minha Prova de Fogo Familiar
— Inês, não percebes? É só uma formalidade. — A voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoava pela sala, carregada de uma doçura artificial que me fazia arrepiar. Estava sentada no sofá de veludo verde, as mãos cruzadas no colo, enquanto eu, de pé junto à janela, tentava controlar o tremor nas mãos.
O meu marido, Rui, olhava para mim com aquele ar de quem já tinha desistido de discutir. — Mãe só quer ajudar. Se o apartamento estiver no nome dela, evitamos problemas com impostos e heranças mais tarde — disse ele, sem convicção.
Senti o sangue ferver. “Ajudar? Ou garantir que nada me pertence se alguma coisa correr mal?” O pensamento atravessou-me como uma lâmina. O apartamento era pequeno, mas era nosso. O nosso primeiro lar, comprado com tanto sacrifício. Lembrei-me das noites em que contei moedas para pagar a entrada, dos turnos extra no hospital, dos sonhos partilhados entre paredes ainda por pintar.
— Não faz sentido — respondi, tentando manter a voz firme. — O apartamento é nosso. Não vejo razão para mudar isso.
Dona Lurdes suspirou alto, como quem carrega o peso do mundo. — Inês, filha, eu só quero proteger o meu filho. Nunca se sabe o dia de amanhã. E tu sabes como são as coisas nas famílias hoje em dia…
O silêncio caiu pesado. Rui desviou o olhar. Senti-me sozinha naquela sala cheia de gente.
Naquela noite, não consegui dormir. O Rui virou-se para mim na cama, os olhos cansados.
— Estás a exagerar — murmurou. — A minha mãe só quer evitar problemas.
— E tu? O que queres? — perguntei, a voz embargada.
Ele não respondeu. Virou-se para o outro lado.
Os dias seguintes foram um desfile de pequenas traições: olhares trocados entre sogra e filho, conversas sussurradas ao telefone, silêncios desconfortáveis à mesa do jantar. Senti-me uma intrusa na minha própria casa.
No trabalho, as colegas notaram que andava diferente.
— Estás bem, Inês? — perguntou a Ana, enquanto trocávamos de turno.
— Só cansada — menti.
Mas por dentro sentia-me a desmoronar. Comecei a duvidar de mim própria. “E se estiver a ser egoísta? E se realmente for melhor assim?” Mas depois lembrava-me do olhar calculista da Dona Lurdes e sentia um nó no estômago.
Uma tarde, ao chegar a casa mais cedo, ouvi vozes na sala.
— Ela nunca vai concordar — dizia Rui, num tom baixo.
— Tens de ser firme! — insistia Dona Lurdes. — Se ela não aceita, é porque não pensa no teu futuro!
Fiquei à porta, sem coragem de entrar. Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. O Rui já não era o homem por quem me tinha apaixonado. Ou talvez nunca tivesse sido e eu é que nunca tinha visto.
Na semana seguinte, Dona Lurdes apareceu com uns papéis na mão.
— Só precisas de assinar aqui — disse ela, estendendo-me uma caneta.
Olhei para o Rui à procura de apoio. Ele encolheu os ombros.
— Faz isto por nós — pediu ele.
O chão fugiu-me dos pés. Assinar aqueles papéis era abdicar de tudo pelo qual tinha lutado. Era admitir que não confiavam em mim. Que eu era descartável.
— Não vou assinar — disse finalmente, a voz trémula mas decidida.
Dona Lurdes levantou-se num salto.
— Então não há mais conversa! — gritou ela. — Se não confias em nós, também não tens lugar nesta família!
O Rui ficou calado. Não me defendeu. Não disse nada.
Nessa noite dormi no sofá. O silêncio entre nós era ensurdecedor.
Os dias passaram e a tensão aumentou. Comecei a chegar mais tarde a casa só para evitar os dois. O Rui tornou-se frio e distante. A Dona Lurdes fazia questão de aparecer todos os dias, como se quisesse marcar território.
Uma noite, depois de um turno particularmente difícil no hospital, encontrei as minhas coisas arrumadas em sacos junto à porta.
— O que é isto? — perguntei, incrédula.
O Rui não me olhou nos olhos.
— A minha mãe acha melhor assim…
Senti o mundo desabar. Saí dali sem olhar para trás.
Fui para casa da minha irmã, Marta. Ela recebeu-me de braços abertos.
— Sempre desconfiei daquela mulher — disse ela enquanto me preparava um chá quente. — Mas nunca pensei que o Rui fosse tão fraco…
Chorei tudo o que tinha para chorar naquela noite. No dia seguinte acordei com uma estranha sensação de alívio. Pela primeira vez em meses sentia que podia respirar.
Os dias seguintes foram difíceis. Tive de procurar um quarto para alugar, dividir despesas com desconhecidos, aprender a viver sozinha outra vez. Mas aos poucos fui recuperando a minha força.
O Rui tentou ligar-me algumas vezes. Nunca atendi.
Meses depois soube por amigos comuns que ele e Dona Lurdes tinham vendido o apartamento e comprado uma casa maior nos arredores de Lisboa. Não senti inveja nem raiva. Só pena.
Hoje olho para trás e vejo como estive perto de perder tudo: não só o apartamento, mas também quem sou e aquilo em que acredito.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres já passaram pelo mesmo? Quantas vezes deixamos que nos tirem tudo em nome do amor ou da família?
E vocês? Até onde iriam para proteger aquilo que é vosso?