Entre o Amor e o Dever: O Peso das Expectativas de Minha Mãe

— Não admito! — gritou a minha mãe, com os olhos faiscando de raiva, enquanto batia com força na mesa da cozinha. — O teu irmão não vai destruir esta família por causa de um capricho!

Eu estava sentada ao lado dela, sentindo o cheiro do café acabado de fazer misturado com o perfume forte de lavanda que ela usava desde sempre. O meu irmão, Miguel, olhava para o chão, os ombros caídos, como se carregasse o peso do mundo. O silêncio dele só fazia aumentar a tensão. Eu sabia que ele estava a sufocar.

— Mãe, não é um capricho — tentei intervir, mas ela cortou-me logo.

— Tu cala-te, Inês! Não percebes nada disto. O casamento é para a vida. Eu e o teu pai tivemos problemas, mas nunca pensei em fugir. E olha para nós! — apontou para a fotografia antiga na parede, onde ela e o meu pai sorriam no dia do casamento, há mais de trinta anos.

Miguel suspirou fundo. — Mãe, eu já não amo a Sofia. Já tentámos tudo. Só estamos juntos por tua causa…

A minha mãe levantou-se de rompante, os olhos marejados de lágrimas. — Por minha causa? Achas que eu quero ver o meu filho infeliz? Quero é ver-te homem! A vida não é feita de paixões passageiras.

Ouvia-se ao longe o som das gaivotas vindas do Tejo, mas dentro daquela cozinha só havia dor e ressentimento. Miguel tinha conhecido a Sofia na faculdade. Foram felizes durante anos, mas depois vieram as discussões, as noites passadas em silêncio, as tentativas falhadas de reaproximação. Eu sabia que ele já não sorria como antes.

Quando ele conheceu a Rita — uma colega do trabalho, divertida e cheia de vida — vi um brilho novo nos olhos dele. Mas também vi o medo: medo da reação da nossa mãe, medo do julgamento dos vizinhos, medo de ser egoísta.

— Não quero ser como tu, mãe — disse ele num sussurro quase inaudível. — Não quero viver uma mentira.

A minha mãe virou-lhe as costas. — És fraco. A Rita nunca vai ser da família. Nunca.

Naquela noite, ouvi Miguel chorar no quarto ao lado. Eu própria chorei baixinho, sem saber como ajudar. O meu pai mantinha-se em silêncio, escondido atrás do jornal, como sempre fazia quando as coisas ficavam difíceis.

Os dias seguintes foram um desfile de telefonemas e visitas inesperadas de tias e primas. Todos tinham uma opinião: “O casamento é sagrado”, “Pensa nos filhos que ainda podem vir”, “A Rita é só uma aventura”. Ninguém perguntava ao Miguel como ele se sentia.

Uma tarde, fui ter com ele ao miradouro de Santa Catarina. Estava sentado no muro, a olhar para Lisboa lá em baixo.

— Sinto-me preso, Inês — confessou-me. — Sinto que estou a viver a vida que a mãe queria para mim, não a minha.

— E se fugisses? — perguntei em tom de brincadeira.

Ele sorriu pela primeira vez em semanas. — Fugir não resolve nada. Quero ser honesto com todos… mas parece impossível.

A pressão aumentou quando a Sofia descobriu sobre a Rita. Houve gritos, lágrimas e acusações. A minha mãe ficou do lado da Sofia, como se ela fosse mais filha do que eu ou o Miguel.

— Ela é uma santa por te aturar! — gritava-lhe a minha mãe ao telefone.

No meio disto tudo, eu sentia-me dividida: queria apoiar o meu irmão, mas também via o sofrimento da Sofia e da minha mãe. A nossa família parecia desmoronar-se.

O divórcio foi inevitável. No tribunal, vi a minha mãe olhar para Miguel como se ele fosse um estranho. Depois disso, recusou-se a falar-lhe durante semanas.

Quando finalmente aceitou encontrar-se com ele e com a Rita num café em Campo de Ourique, foi um desastre anunciado.

— Não tens vergonha? — disse à Rita assim que se sentaram. — Vieste destruir uma família inteira!

A Rita tentou manter a calma. — Dona Teresa, eu amo o Miguel. Só quero vê-lo feliz.

— Felicidade? Isso não existe! O que existe é respeito! — respondeu-lhe a minha mãe com amargura.

Miguel levantou-se abruptamente. — Chega! Não vou escolher entre vocês. Mas também não vou abdicar da minha vida por causa das tuas ideias antigas.

Saíram os dois de mãos dadas, deixando a minha mãe sozinha na mesa do café, com os olhos perdidos no vazio.

Durante meses, as coisas ficaram frias entre todos nós. Os jantares de domingo passaram a ser silenciosos ou simplesmente inexistentes. O meu pai continuava calado; eu tentava ser ponte entre todos, mas sentia-me cada vez mais cansada.

Um dia, encontrei a minha mãe sentada no sofá, a olhar para as fotografias antigas.

— Onde foi que eu errei? — perguntou-me com voz trémula.

Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe na mão.

— Talvez nunca tenhamos aprendido que cada um tem direito à sua felicidade…

Ela chorou baixinho e eu abracei-a como há muito não fazia.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem presas às expectativas dos outros? Quantos filhos sacrificam a própria felicidade para não desiludir os pais? Será que algum dia vamos aprender a amar sem impor condições?