Entre o Amor e o Dever: A Última Primavera de Eugénio
— Não insistas mais, Marta! — gritou Eugénio, com a voz trémula mas firme, enquanto batia com a mão na mesa da cozinha. — Esta casa é tudo o que me resta! Não vou para lado nenhum!
Fiquei ali, parada, sentindo o peso das palavras dele como se fossem pedras a cair-me no peito. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma antigo dos móveis de madeira escura. Era a mesma cozinha onde, em criança, me sentava ao colo da minha mãe e Eugénio me ensinava a fazer contas de cabeça. Agora, éramos só nós dois, frente a frente, separados por uma mesa e por uma vida inteira de memórias.
— Eugénio, não é por mal… — tentei explicar, baixando a voz. — Só quero que estejas seguro. Já caíste duas vezes este mês. E se acontece alguma coisa pior?
Ele desviou o olhar para a janela, onde a chuva batia devagarinho nos vidros. Os olhos dele, outrora vivos e curiosos, estavam agora cansados, mas ainda havia neles um brilho teimoso.
— A tua mãe nunca me obrigou a nada — murmurou. — E tu também não vais obrigar.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não era justo! Eu só queria ajudar. Mas como é que se ajuda alguém que não quer ser ajudado?
A verdade é que Eugénio nunca foi meu pai biológico. Conheci-o quando tinha oito anos, depois do divórcio dos meus pais. Ele entrou na nossa vida devagarinho, com uma paciência rara. Nunca tentou substituir ninguém, mas foi ficando. E eu fui aprendendo a gostar dele à minha maneira.
Agora, depois da morte da minha mãe há três anos, éramos só nós dois. O resto da família afastou-se: o meu irmão vive em Londres e só liga no Natal; os primos aparecem nos funerais e pouco mais. Senti-me responsável por Eugénio — talvez até mais do que ele queria.
— Marta, eu sei que te preocupas — disse ele, mais calmo. — Mas eu não sou um fardo. Ainda sei cuidar de mim.
— Não és um fardo! — respondi, quase ofendida. — Mas não podes continuar sozinho nesta casa enorme. O telhado precisa de obras, as escadas são perigosas… E tu já te esqueceste do gás ligado duas vezes!
Ele suspirou fundo e passou as mãos pelo rosto enrugado.
— O que tu queres é livrar-te de mim — disse baixinho.
Essas palavras doeram mais do que qualquer discussão anterior. Senti os olhos marejados de lágrimas e virei-me para não ver ele reparar.
— Não digas disparates — sussurrei.
O silêncio instalou-se entre nós como uma parede invisível. Fui buscar duas chávenas e servi-lhe chá, tentando acalmar-me.
Enquanto mexia o açúcar na chávena dele, lembrei-me da primeira vez que Eugénio me levou ao Jardim da Estrela. Tinha comprado um gelado para mim e outro para ele. Sentámo-nos num banco e ele contou-me histórias da infância dele em Trás-os-Montes: as vindimas com os irmãos, os serões à lareira, as cartas trocadas com a mãe durante a tropa em Angola.
Agora era eu quem tinha de cuidar dele. Mas como se cuida de alguém que só quer manter a dignidade?
Naquela noite, depois do jantar, liguei à minha amiga Teresa.
— Não sei o que fazer — desabafei. — Ele recusa-se a ir para um lar. Mas eu não consigo estar sempre aqui. Tenho o trabalho, os miúdos…
— Já pensaste em contratar uma cuidadora? — sugeriu ela.
— Ele não aceita estranhos em casa. Diz que não precisa de ninguém.
— E se tentasses convencê-lo a ir ver um lar só para conhecer? Sem compromisso?
Suspirei. Já tinha tentado tudo: conversas calmas, ameaças veladas, até chantagem emocional. Nada resultava.
No dia seguinte, voltei à casa dele com uma lista de lares na zona de Lisboa. Mostrei-lhe fotografias: jardins bonitos, salas comuns cheias de luz, pessoas a jogar cartas.
— Olha para isto, Eugénio. Não parece tão mau assim…
Ele olhou para as imagens sem entusiasmo.
— Sabes o que é que eu vejo? — perguntou. — Vejo pessoas à espera da morte.
Fiquei sem palavras.
— Eu quero morrer aqui — continuou ele. — Nesta casa onde vivi com a tua mãe. Onde plantei as roseiras no jardim. Onde ouvi os teus risos quando eras pequena.
Senti um nó na garganta. Como é que se responde a isto?
Os dias foram passando e Eugénio foi ficando cada vez mais frágil. Uma manhã encontrei-o caído no corredor; tinha tropeçado no tapete e magoado o braço. Fui com ele ao hospital e esperei horas nas urgências enquanto ele resmungava baixinho sobre médicos incompetentes e hospitais cheios de gente.
Quando finalmente voltámos para casa, sentei-me ao lado dele no sofá.
— Eugénio… — comecei devagarinho — se não queres ir para um lar… pelo menos deixa-me trazer alguém para te ajudar em casa.
Ele olhou-me nos olhos durante muito tempo antes de responder.
— Só se fores tu a escolher quem vem cá — disse finalmente.
Senti um alívio imenso misturado com culpa. Era uma pequena vitória, mas sabia que não ia ser fácil.
Começámos a entrevistar cuidadoras: algumas eram demasiado frias; outras falavam alto demais; uma delas cheirava fortemente a perfume barato e Eugénio torceu logo o nariz.
Finalmente encontrámos a Dona Rosa: uma senhora calma, com mãos firmes e voz doce do Alentejo. Falou-lhe das suas galinhas e dos netos; contou-lhe piadas antigas e fez-lhe chá de tília como ele gostava.
Aos poucos, Eugénio foi aceitando a presença dela em casa. Ainda resmungava quando ela lhe lembrava dos comprimidos ou lhe sugeria um banho extra; mas já não estava sozinho.
Mesmo assim, as discussões entre nós continuavam. Um dia cheguei lá e encontrei-o a tentar subir ao telhado com uma escada velha.
— Estás maluco?! — gritei-lhe do jardim.
Ele olhou para mim com aquele ar teimoso de sempre.
— Se não for eu a arranjar isto, quem vai ser? Achas que vou ficar à espera?
Desci-o da escada quase à força e nesse dia chorei no carro antes de voltar para casa.
O tempo foi passando e Eugénio foi perdendo forças devagarinho. Começou a esquecer-se das datas; confundia nomes; às vezes chamava-me pelo nome da minha mãe e pedia desculpa logo a seguir.
Uma tarde de primavera sentei-me ao lado dele no jardim das roseiras.
— Sabes, Marta… — disse ele baixinho — nunca pensei chegar tão velho. Mas também nunca pensei ter alguém como tu ao meu lado.
Abracei-o com força e senti as lágrimas caírem-me pela cara abaixo.
Na última semana dele em casa, toda a família apareceu: o meu irmão veio de Londres; os primos trouxeram bolos; até vizinhos antigos vieram dar um abraço.
Eugénio partiu numa manhã tranquila, com o cheiro das rosas no ar e a mão da Dona Rosa na dele.
Agora venho muitas vezes àquela casa vazia e sento-me no jardim onde ele plantou as roseiras para a minha mãe.
Pergunto-me muitas vezes: será que fiz tudo o que podia? Será que respeitei mesmo os desejos dele? Ou será que tentei moldar-lhe os últimos dias à minha imagem?
E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre proteger quem amam ou respeitar-lhes a vontade até ao fim?