Entre o Amor e o Desprezo: O Vendaval da Minha Sogra
— Não sabes sequer fazer um arroz decente, Mariana? — A voz da Dona Lurdes ecoou pela sala, cortando o burburinho do almoço de domingo. Senti o rosto a arder, as mãos a tremerem enquanto todos os olhares se voltavam para mim. O Rui, meu marido, desviou o olhar para o prato, fingindo não ouvir. A minha sogra continuou, impiedosa: — Na minha casa, sempre se comeu bem. Não sei como é que o meu filho aguenta isto.
Naquele momento, desejei desaparecer. Cresci em Aveiro, numa casa onde a minha mãe me ensinou que respeito era a base de tudo. O meu pai, homem simples, nunca levantou a voz. Mas ali, naquela sala cheia de gente, senti-me uma intrusa, uma peça fora do lugar num puzzle que nunca me quis encaixar.
O Rui e eu conhecemo-nos na faculdade do Porto. Ele era divertido, atento, fazia-me rir como ninguém. Quando me pediu em casamento, achei que tinha encontrado o meu lugar no mundo. Mas logo percebi que casar com ele era também casar com a família dele — e com as sombras que ela trazia.
A primeira vez que fui a casa dos pais do Rui, Dona Lurdes olhou-me de cima a baixo como quem avalia um móvel antigo. — És magrinha demais. O Rui gosta de mulheres com corpo — disse-me, sem pudor. Sorri, sem saber o que responder. O sogro, Senhor António, limitou-se a acenar com a cabeça e voltou ao jornal.
Com o tempo, fui percebendo que nada do que eu fazia era suficiente. Se cozinhava bacalhau à Brás, Dona Lurdes dizia que estava salgado. Se limpava a casa, ela encontrava pó nos cantos. Se comprava flores para alegrar a sala, ela resmungava que eram um desperdício de dinheiro.
O Rui tentava apaziguar: — Deixa lá, Mariana. A minha mãe é assim com toda a gente.
Mas eu via como ela tratava a cunhada Teresa: sorrisos, elogios ao arroz de pato, prendas no Natal embrulhadas com laços dourados. Comigo era sempre diferente. Sentia-me cada vez mais pequena.
O pior foi quando engravidei do nosso primeiro filho. Achei que talvez um neto mudasse as coisas. Mas Dona Lurdes só disse: — Espero que seja rapaz. As meninas dão muito trabalho.
Quando nasceu o Tomás, ela apareceu no hospital com um saco de roupa usada e um comentário venenoso: — Não vás pôr o menino só a leite materno. Vais ver que não engorda.
As noites tornaram-se longas e solitárias. O Rui trabalhava até tarde e eu ficava sozinha com o bebé e os meus pensamentos. Sentia falta da minha mãe, da sua voz suave ao telefone: — Aguenta, filha. Um dia ela há de aceitar-te.
Mas os anos passaram e nada mudou. Pelo contrário: os almoços de domingo tornaram-se campos de batalha silenciosos. Dona Lurdes criticava tudo: desde a forma como vestia o Tomás até ao modo como organizava os talheres na mesa.
Um dia, já cansada de tanta humilhação, decidi confrontar o Rui:
— Não aguento mais isto! Porque é que nunca me defendes?
Ele suspirou:
— Mariana, é a minha mãe… Não quero criar problemas.
— E eu? Não sou tua família também?
Ele ficou calado. Aquele silêncio doeu mais do que qualquer palavra da sogra.
Comecei a evitar os almoços de domingo. Inventava desculpas: dores de cabeça, trabalho atrasado, Tomás constipado. Mas Dona Lurdes não desistia:
— A Mariana anda muito esquisita… Não sei o que ela pensa da vida — dizia ao telefone para o Rui, alto o suficiente para eu ouvir.
O ponto de rutura chegou num Natal. Tinha passado horas na cozinha a preparar rabanadas e sonhos como a minha mãe fazia. Quando pus os doces na mesa, Dona Lurdes provou uma rabanada e fez uma careta:
— Isto está seco como palha! Não percebo porque insistes em fazer coisas que não sabes.
Levantei-me da mesa sem dizer palavra e fui para o quarto do Tomás. Sentei-me na cama dele e chorei baixinho para não acordá-lo.
No dia seguinte, liguei à minha mãe:
— Mãe, acho que não aguento mais…
Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:
— Filha, às vezes temos de escolher entre agradar aos outros ou sermos fiéis a nós próprias.
Essas palavras ficaram comigo durante semanas. Comecei a pensar na Mariana que eu era antes do casamento: alegre, confiante, cheia de sonhos. Onde estava essa mulher agora?
Decidi procurar ajuda profissional. Fui à psicóloga do centro de saúde da freguesia. Falei-lhe das críticas constantes, da solidão dentro da própria casa.
— Mariana, você precisa de pôr limites — disse-me ela. — Não é egoísmo cuidar de si própria.
Comecei devagarinho: disse ao Rui que não ia mais aos almoços todos os domingos. Que precisava de tempo para mim e para o Tomás. Ele ficou zangado no início:
— A minha mãe vai ficar magoada…
— E eu? Já estou magoada há anos — respondi-lhe.
Aos poucos fui recuperando pedaços de mim mesma. Voltei a pintar — algo que adorava antes de casar — e inscrevi-me num curso noturno na biblioteca municipal.
Dona Lurdes não gostou:
— Agora andas feita artista? Isso não dá dinheiro nenhum!
Mas já não me importava tanto com as opiniões dela. O Tomás começou a notar a diferença:
— Mamã, estás mais feliz?
Sorri-lhe:
— Estou a tentar estar, filho.
O Rui demorou a perceber que eu estava diferente. Um dia chegou mais cedo do trabalho e encontrou-me a pintar na varanda.
— Mariana… O que se passa contigo?
Olhei-o nos olhos:
— Estou cansada de viver à sombra da tua mãe. Quero ser feliz à minha maneira.
Ele ficou calado durante muito tempo e depois disse:
— Nunca pensei que fosse assim tão grave…
Nesse dia tivemos uma conversa longa sobre tudo o que tinha ficado por dizer durante anos. O Rui prometeu tentar mudar as coisas com a mãe dele.
Não foi fácil nem rápido. Dona Lurdes continuou igual durante muito tempo. Mas eu já não era a mesma Mariana submissa e insegura.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci nesta luta silenciosa pela minha dignidade. Ainda vou aos almoços de família — mas agora levo os meus próprios pratos e receitas sem pedir aprovação a ninguém.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem presas às expectativas das famílias dos maridos? Quantas perdem quem são para agradar aos outros? Será possível encontrar equilíbrio entre respeito pelos outros e respeito por nós próprias?