Entre o Amor e o Desprezo: O Genro que Dividiu a Minha Família

— Inês, não podes continuar assim! — gritei, sentindo a voz tremer de raiva e desespero. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite, mas a discussão parecia não ter fim. Ela olhou-me com aqueles olhos castanhos, tão parecidos com os meus, mas cheios de uma determinação que eu nunca consegui compreender.

— Mãe, já te disse mil vezes: a minha vida é comigo. O Rui pode não ser perfeito, mas é o homem que eu escolhi. — A voz dela era firme, mas percebi-lhe um ligeiro tremor. Talvez fosse cansaço ou talvez uma dúvida que ela tentava esconder até de si própria.

Desde que Inês trouxe o Rui para casa, há quase cinco anos, que sinto um nó no estômago sempre que o vejo. Não é só por ele não ter emprego fixo — embora isso já me tirasse o sono — mas pela forma como parece sempre à deriva, como se a vida fosse um rio onde ele se deixa levar sem nunca remar.

Lembro-me do primeiro jantar em família. O meu marido, António, tentou ser cordial, mas não conseguiu esconder o olhar crítico quando o Rui falou dos seus “projetos”. Projetos que nunca passavam de ideias soltas: abrir uma loja de bicicletas usadas, dar aulas de guitarra, vender artesanato na internet. Nada resultava. E a cada fracasso, era a Inês quem segurava as pontas: pagava as contas, fazia horas extra no hospital e ainda arranjava tempo para visitar a sogra doente do Rui.

— Não percebo porque insistes em ajudar aquela família — disse-lhe uma noite, quando ela chegou tarde e exausta. — Eles nunca te deram valor. Nem sequer agradecem!

Ela pousou a mala com um suspiro pesado. — Mãe, eles são família do Rui. E ele é minha família agora. Não me peças para virar costas a quem precisa.

O António tentava manter-se neutro, mas eu via-lhe o desconforto. Uma noite, depois de mais uma discussão, sentou-se ao meu lado na varanda e disse:

— Maria do Carmo, talvez devêssemos dar espaço à Inês. Ela é adulta. Se ela acredita no Rui…

— Acredita porque é ingénua! — interrompi. — Ele não lhe dá nada! Só lhe pede mais e mais.

O tempo foi passando e as coisas só pioraram. O Rui foi despedido de mais dois trabalhos temporários. A mãe dele adoeceu gravemente e foi a Inês quem ficou noites no hospital ao lado dela. Eu via a minha filha definhar: olheiras fundas, sorriso cada vez mais raro. Mas sempre que eu tentava falar, ela erguia um muro entre nós.

Um dia, ouvi-a ao telefone com o Rui:

— Não te preocupes, amor. Eu trato das contas este mês outra vez… Sim, já falei com a minha mãe, mas ela não entende… Eu sei que estás a tentar…

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como podia ela não ver? Como podia aceitar tão pouco?

A gota de água foi quando descobri que ela tinha vendido as poucas joias da avó para pagar uma dívida do Rui. Confrontei-a assim que chegou a casa:

— Inês! Como foste capaz? As alianças da tua avó! Eram para ti!

Ela chorou como nunca a tinha visto chorar. — Mãe… eu não tinha escolha. O Rui estava desesperado…

— E tu? E nós? Não pensaste em nós?

Ela saiu porta fora naquela noite e só voltou dois dias depois. António tentou acalmar-me:

— Maria do Carmo, estamos a perdê-la…

Mas eu não conseguia ceder. Sentia-me traída pela minha própria filha.

Os meses seguintes foram de silêncio e distância. O Natal foi um desastre: Inês apareceu sozinha, olhos vermelhos, sorriso forçado. O Rui nem sequer ligou.

No início do ano seguinte, recebi uma chamada do hospital: Inês tinha tido um colapso nervoso durante um turno noturno. Corri para lá com o coração nas mãos.

Quando cheguei ao quarto dela, vi-a tão frágil como nunca antes. Sentei-me ao lado da cama e peguei-lhe na mão.

— Desculpa, mãe… — murmurou ela.

— Não tens de pedir desculpa… Só quero que sejas feliz.

Ela olhou-me nos olhos e vi ali uma tristeza profunda.

— Eu amo-o… Mas às vezes sinto que estou sozinha nesta luta.

Ficámos em silêncio muito tempo. Depois perguntei:

— E ele? Onde está?

Ela desviou o olhar.

— Está com a mãe dele… Não sabe que estou aqui.

Nesse momento percebi tudo: o amor pode ser cego e generoso, mas também pode ser uma prisão feita de esperança e medo de desistir.

Quando finalmente teve alta, Inês voltou para casa dela. Eu tentei aproximar-me mais, sem julgar tanto. Mas era difícil ver a minha filha perder-se por alguém que não lhe dava nada em troca.

Um dia, meses depois, ela apareceu em casa com uma mala na mão.

— Mãe… posso ficar aqui uns tempos?

Abraçámo-nos em silêncio. Ela chorou no meu ombro como quando era criança.

Soube depois que tinha deixado o Rui. Que ele nem tentou impedi-la de partir.

A vida recomeçou devagar para nós duas. Houve dias bons e dias maus. Houve recaídas e telefonemas trocados às escondidas. Mas aos poucos vi a minha filha regressar — mais madura, mais cautelosa, mas ainda com aquele coração enorme.

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido diferente se eu tivesse apoiado mais? Ou teria ela sofrido menos se eu tivesse sido mais dura desde o início?

No fundo, continuo sem saber qual é o papel certo de uma mãe quando vê a filha amar alguém que não merece esse amor.

E vocês? Até onde iriam para proteger um filho? Será que alguma vez conseguimos realmente salvá-los das escolhas deles?