Entre o Amor e o Desgaste: Quando a Família Pede Demais
— Marta, já que vais fazer arrumações, guarda-me aquelas roupas da Leonor que já não servem. A minha Inês vai precisar — disse a minha prima Carla ao telefone, sem sequer perguntar se eu estava disponível para conversar.
Fiquei em silêncio por uns segundos, o telemóvel quente na mão. O pedido dela era só mais um numa longa lista de exigências familiares. Desde que a Leonor nasceu, parece que tudo o que sai cá de casa tem destino certo: brinquedos para o primo Rui, livros para a tia Lurdes, roupas para a Inês. Ninguém pergunta se preciso das coisas, se quero guardá-las para recordação ou até se me apetece dar. Limitam-se a exigir, como se eu fosse uma espécie de armazém familiar.
— Marta? Estás aí? — insistiu a Carla.
— Sim, desculpa… Olha, ainda não sei o que vou fazer com as roupas. Preciso de pensar — respondi, tentando soar neutra.
Do outro lado, ouvi um suspiro impaciente.
— Não compliques, mulher! Se não vais usar, mais vale dar a quem precisa. Não te esqueças que a vida está difícil para todos — atirou ela, com aquele tom moralista que me faz sentir sempre egoísta.
Desliguei o telefone com um nó no estômago. Sentei-me no sofá da sala, rodeada de brinquedos espalhados e roupa por dobrar. Oiço a Leonor a rir-se no quarto, inocente à confusão dos adultos. Sinto-me cansada. Não é só o trabalho no escritório, nem as noites mal dormidas quando a Leonor tem pesadelos. É esta pressão constante da família, esta obrigação de dar tudo o que tenho e mais alguma coisa.
O meu marido, o João, entrou na sala nesse momento.
— Outra vez ao telefone com a Carla? — perguntou ele, pousando as chaves na mesa.
Assenti com a cabeça.
— Ela quer as roupas da Leonor. Nem perguntou se eu queria guardar alguma coisa…
O João sentou-se ao meu lado e pegou na minha mão.
— Tens de aprender a dizer que não, Marta. Não és obrigada a dar nada a ninguém. Se quiseres guardar as roupas para recordação ou até para um futuro irmãozinho da Leonor, é contigo.
Suspirei. Dizer que não nunca foi o meu forte. Sempre fui aquela pessoa que cede para evitar discussões. Mas ultimamente sinto que estou a perder partes de mim nesta generosidade forçada.
No dia seguinte, fui buscar a Leonor ao jardim de infância. A educadora sorriu-me e disse:
— A Leonor hoje contou que vai ter uma mana! —
Olhei para ela, surpreendida.
— Não… não está nos planos — respondi, corando.
A educadora riu-se.
— Eles inventam cada coisa! —
No caminho para casa, perguntei à Leonor:
— Porque disseste à professora que vais ter uma mana?
Ela olhou-me com aqueles olhos grandes e sérios.
— Porque tu dás sempre tudo aos outros. Pensei que se tivesses outra bebé não davas as coisas todas…
Fiquei sem palavras. A inocência dela era um espelho cruel da minha realidade: até a minha filha percebia que eu estava sempre a ceder.
Cheguei a casa e sentei-me à mesa da cozinha com o João.
— Achas que estou a ser egoísta por querer guardar algumas coisas da Leonor? — perguntei-lhe.
Ele abanou a cabeça.
— Não és egoísta. És mãe. Tens direito às tuas memórias e às tuas escolhas. A tua família tem de perceber isso.
Naquela noite não consegui dormir. Revirei-me na cama, a pensar em todas as vezes que disse sim quando queria dizer não: quando dei o carrinho de bebé à minha cunhada sem sequer perguntar ao João; quando entreguei os livros preferidos da Leonor à tia Lurdes porque ela disse que eram caros demais para comprar; quando deixei que levassem os brinquedos do aniversário da Leonor porque “já tinha muitos”.
No sábado seguinte, fui visitar os meus pais em Almada. Mal entrei em casa deles, senti aquele cheiro familiar de café acabado de fazer e bolo de laranja. A minha mãe veio logo ter comigo.
— Então filha, já separaste as roupas para a Carla?
Olhei para ela, cansada.
— Mãe… eu ainda não decidi o que vou fazer com as roupas.
Ela franziu o sobrolho.
— Mas porquê? Vais guardar tudo? Olha que depois só ocupa espaço…
O meu pai interveio do fundo do corredor:
— Deixa lá a miúda decidir! Cada um sabe do seu — disse ele, mas sem grande convicção.
A conversa ficou tensa. Senti-me pressionada por todos os lados. A minha mãe começou a falar das dificuldades da Carla, do quanto ela precisava de ajuda, do espírito de família…
— Mãe, eu ajudo sempre toda a gente! Mas também preciso de pensar em mim e na Leonor! — explodi finalmente, surpreendendo até a mim própria.
O silêncio caiu na sala como uma pedra. A minha mãe olhou-me magoada.
— Não sabia que te sentias assim…
Senti-me culpada imediatamente. Mas também aliviada por finalmente ter dito alguma coisa.
No domingo à tarde recebi uma mensagem da Carla: “Então? Já tens as roupas? Preciso mesmo delas.” Senti o coração acelerar. Peguei no telefone e liguei-lhe.
— Carla, desculpa mas este ano vou guardar algumas coisas da Leonor. Preciso delas para mim, para recordação ou talvez para outro filho no futuro. Espero que entendas.
Do outro lado ouvi um silêncio gelado.
— Pronto… se é assim… — respondeu ela num tom magoado e desligou sem se despedir.
Passei o resto do dia ansiosa, cheia de dúvidas. Será que fui egoísta? Será que devia ter cedido mais uma vez? O João tentou acalmar-me:
— Marta, tens direito às tuas coisas e às tuas memórias. Quem gosta de ti vai perceber isso.
Na segunda-feira seguinte, ao deixar a Leonor na escola, encontrei a tia Lurdes à porta do supermercado.
— Então menina Marta! Ouvi dizer que agora já não dás nada… — disse ela num tom meio trocista.
Senti o sangue ferver nas veias.
— Tia Lurdes, dou quando quero e posso. Mas também tenho direito às minhas coisas — respondi firme pela primeira vez na vida.
Ela encolheu os ombros e afastou-se sem dizer mais nada. Fiquei ali parada uns segundos, sentindo-me estranhamente livre e ao mesmo tempo sozinha.
Os dias passaram e fui recebendo olhares estranhos nos almoços de família. Sussurros atrás das costas: “A Marta agora está diferente”, “Deve ser influência do João”, “Coitada da Carla”…
Mas também comecei a sentir outra coisa: respeito por mim própria. Pela primeira vez em muitos anos comecei a pensar no que eu queria realmente guardar da infância da Leonor: aquele vestido amarelo do primeiro aniversário, o peluche preferido dela, os sapatinhos pequeninos…
Numa noite fria de novembro sentei-me com a Leonor no chão do quarto dela e começámos juntas a escolher o que guardar numa caixa especial. Ela sorriu-me:
— Mãe, posso guardar este vestido para quando for grande?
Sorri-lhe com lágrimas nos olhos:
— Claro que sim, filha. É teu. E ninguém te pode obrigar a dar nada que não queiras.
Hoje olho para trás e vejo como foi difícil aprender a dizer não à família. Ainda me sinto culpada às vezes — afinal somos ensinadas desde pequenas a dar tudo pelos outros. Mas será justo esquecer-nos de nós próprias em nome desse “espírito de família”?
E vocês? Já passaram por situações assim? Como conseguiram encontrar o equilíbrio entre ajudar quem amam e proteger aquilo que também vos pertence?