Entre o Amor e o Desgaste: O Peso Invisível das Pequenas Coisas

— Outra vez só pão e leite? — perguntei, tentando esconder o cansaço na voz enquanto pousava os sacos das compras no balcão da cozinha. O Miguel nem levantou os olhos do telemóvel. — O que é que queres que eu faça, Inês? Não disseste nada.

Aquela resposta, tão simples e tão fria, foi como um estalo. Não disse nada? Quantas vezes tinha eu de dizer? Quantas vezes tinha de lembrar que o frigorífico não se enchia sozinho, que os legumes não apareciam por magia na bancada, que o dinheiro não caía do céu para pagar a conta da luz?

Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Lembrei-me da minha mãe, a Dona Teresa, sempre a repetir: “Inês, não deixes que te tomem por garantida.” E ali estava eu, aos 34 anos, numa casa pequena em Almada, a sentir-me invisível.

— Miguel, já reparaste que nos últimos três meses só compraste pão duas vezes e chá uma vez? E mesmo assim porque te pedi — atirei, sem conseguir conter mais.

Ele encolheu os ombros. — Não reparei. Achava que tinhas tudo controlado.

Controlado. Era essa a palavra. Eu tinha tudo controlado: as contas, as refeições, as limpezas, até os aniversários da família dele. Mas quem me controlava a mim? Quem cuidava de mim?

O silêncio instalou-se entre nós como uma parede. Fui arrumar as compras, cada gesto mais pesado do que o anterior. O Miguel continuou no sofá, absorto no telemóvel, como se nada fosse.

Naquela noite, deitei-me cedo. Ouvi-o entrar no quarto já depois da meia-noite. Fingiu que não viu as lágrimas nos meus olhos. Ou talvez tenha mesmo deixado de ver.

No dia seguinte, acordei antes dele. Preparei-lhe o pequeno-almoço — café forte e torradas com manteiga, como gostava — e deixei tudo pronto na mesa. Saí para o trabalho sem dizer nada. No autocarro para Lisboa, olhei pela janela e vi o Tejo a brilhar ao longe. Senti-me pequena, esmagada pela rotina.

No escritório, a minha colega Marta percebeu logo que algo não estava bem.

— Estás com um ar péssimo, Inês. O que se passa?

— Nada — menti. — Só cansaço.

Mas ela insistiu:

— É o Miguel outra vez?

Assenti com um aceno de cabeça. Marta suspirou.

— Sabes, às vezes parece que eles vivem noutro mundo. O Rui também nunca percebe quando falta papel higiénico ou detergente. Mas pelo menos pergunta se preciso de alguma coisa.

Senti uma pontada de inveja. O Miguel nem isso fazia.

Ao fim do dia, voltei para casa com um nó no estômago. Encontrei-o sentado à mesa da cozinha, a olhar para o pequeno-almoço intocado.

— Não tinhas fome? — perguntei.

Ele abanou a cabeça.

— Esqueci-me… Estive a falar com o meu pai ao telefone. Ele está preocupado com a reforma.

Fiquei calada. Pensei em quantas vezes eu própria tinha estado preocupada — com as contas, com o futuro — e nunca ninguém me perguntou nada.

Os dias foram passando assim: eu a carregar sacos de supermercado sozinha, ele a esquecer-se de tudo o que não fosse trabalho ou futebol. As discussões tornaram-se mais frequentes. Pequenas coisas: o lixo por levar, a loiça por lavar, as meias espalhadas pela casa.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem devia ir ao supermercado, explodi:

— Sentes-te bem em viver assim? Achas justo eu fazer tudo sozinha?

Ele ficou calado durante uns segundos longos demais.

— Não sei… Nunca pensei muito nisso — respondeu finalmente.

Senti-me derrotada. Como é possível amar alguém que não pensa em nós?

Lembrei-me do início do nosso namoro: passeios à beira-rio, jantares improvisados à luz das velas, risos partilhados até tarde. Onde é que nos tínhamos perdido?

Nessa noite dormi no sofá. O Miguel nem tentou convencer-me a voltar para a cama.

No dia seguinte, fui visitar a minha mãe. Ela olhou para mim com aquele olhar sábio de quem já viu muito na vida.

— Filha, tu estás triste. O Miguel faz-te feliz?

Não consegui responder. As lágrimas caíram sem controlo.

— Eu amo-o… mas sinto-me sozinha — confessei.

A minha mãe apertou-me as mãos.

— O amor não chega se for só tu a dar. Precisas de alguém que veja o teu esforço e queira partilhar o peso contigo.

Voltei para casa com o coração apertado. Encontrei o Miguel na sala, a ver televisão como se nada fosse.

— Precisamos de falar — disse-lhe.

Ele olhou para mim com ar cansado.

— Outra vez?

Sentei-me à frente dele.

— Eu não aguento mais isto sozinha. Ou mudamos juntos ou não faz sentido continuarmos.

Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois levantou-se e foi para o quarto sem dizer uma palavra.

Naquela noite dormi pouco. Pensei em tudo o que tínhamos vivido juntos e em tudo o que eu tinha sacrificado para manter aquela relação à tona: amigos afastados porque ele não gostava deles; oportunidades recusadas porque ele precisava de mim em casa; sonhos adiados porque nunca havia dinheiro suficiente — mas sempre havia para os hobbies dele.

No dia seguinte encontrei um bilhete na mesa da cozinha:

“Fui pensar. Preciso de tempo.”

O vazio daquela casa parecia maior do que nunca. Sentei-me no chão da cozinha e chorei até não ter mais forças.

Durante dias vivi num limbo: ia trabalhar, voltava para casa vazia, fazia as tarefas sozinha como sempre fizera — mas agora sentia ainda mais o peso da solidão.

Uma tarde recebi uma mensagem dele:

“Podemos falar?”

Marcámos encontro num café perto do rio. Ele chegou atrasado, como sempre. Sentou-se à minha frente e ficou a olhar para as mãos.

— Desculpa — disse finalmente. — Nunca percebi quanto fazias por nós. Sempre achei que era normal… Que era assim que funcionava.

Olhei para ele com tristeza e alívio misturados.

— Não é normal sentir-me invisível na minha própria casa, Miguel.

Ele assentiu.

— Quero mudar… mas não sei se consigo sozinho.

Ficámos ali sentados em silêncio durante muito tempo. No fim, decidi dar-lhe uma última oportunidade — mas desta vez impus limites claros: tarefas divididas, contas partilhadas, respeito mútuo pelo esforço de cada um.

Os meses seguintes foram difíceis. Houve recaídas, discussões acesas e momentos em que quase desisti. Mas também houve pequenas vitórias: ele começou a ir às compras comigo; aprendeu a cozinhar arroz; lembrou-se do meu aniversário sem eu ter de lhe dizer nada.

Ainda hoje não sei se fiz bem em ficar ou se devia ter ido embora quando tive oportunidade. Mas aprendi uma coisa: ninguém deve carregar sozinho o peso do amor — nem das compras do supermercado.

E vocês? Já sentiram esse peso invisível nas vossas relações? Até onde vale a pena lutar antes de nos perdermos de nós mesmos?