Entre o Amor e o Controle: O Peso das Expectativas de Minha Mãe

— Não vais sair assim, pois não, Inês? — A voz da minha mãe ecoou pelo corredor, carregada de reprovação. Eu já sabia o que vinha a seguir: a lista interminável de críticas ao meu cabelo, à roupa, às minhas escolhas. Respirei fundo, tentando não revirar os olhos. — Mãe, tenho 23 anos. Posso escolher o que visto. — respondi, tentando manter a calma. Ela cruzou os braços, encostada à porta do meu quarto, como se fosse uma sentinela a guardar o último reduto da minha liberdade.

Desde pequena, Maria — a minha mãe — sempre fez questão de estar presente em tudo. Demasiado presente. Quando era miúda, achava que era normal ela escolher as minhas roupas, os meus amigos, até os livros que eu lia. Mas agora, adulta, sinto-me sufocada. Sinto que cada passo meu é vigiado, cada decisão questionada.

Lembro-me de um episódio marcante: tinha acabado de entrar na faculdade de Psicologia em Coimbra. Era o meu sonho desde miúda — queria entender as pessoas, talvez até entender a minha mãe. Mas ela queria que eu fosse médica, como o meu pai tinha sido antes de morrer num acidente de carro quando eu tinha dez anos. — Psicologia? Vais acabar a atender maluquinhos! — gritou ela na cozinha, atirando um pano para cima da mesa. — O teu pai não ia gostar disso. — Senti uma dor aguda no peito. O meu pai era o meu porto seguro, e agora era usado como arma contra mim.

Os anos passaram e a pressão só aumentou. Quando comecei a namorar o Miguel, um rapaz simples de Viseu, trabalhador mas sem grandes ambições académicas, a minha mãe quase teve um colapso. — Vais estragar a tua vida por causa desse rapaz? Ele nem sequer tem curso superior! — gritava ela ao telefone, enquanto eu chorava no quarto. O Miguel tentava acalmar-me: — Inês, não deixes que ela mande em ti. Tu és forte. — Mas será que era mesmo?

As discussões tornaram-se rotina. A minha mãe controlava tudo: queria saber onde eu estava a cada minuto, com quem falava, o que comia. Uma vez, chegou ao ponto de ligar para a minha chefe no café onde trabalhava ao fim de semana para perguntar se eu estava mesmo lá. Fiquei humilhada. No dia seguinte, todos me olhavam de lado e sussurravam.

A gota de água foi quando decidi candidatar-me a um Erasmus em Barcelona. Era a oportunidade da minha vida: estudar fora, conhecer novas culturas, crescer. Quando lhe contei, ela desatou a chorar como se eu estivesse a anunciar a minha morte. — Vais-me deixar sozinha? Depois de tudo o que fiz por ti? — repetia entre soluços. Senti-me egoísta e ingrata. Passei noites em claro a pensar se devia abdicar do meu sonho para não a magoar.

O meu irmão mais novo, Tiago, sempre foi o preferido dela. Ele podia sair à noite, chegar tarde, escolher o curso que quisesse (Engenharia Informática), e nunca ouvi uma palavra de censura. Um dia confrontei-a: — Porque é que com ele é tudo tão fácil? — Ela respondeu sem hesitar: — O Tiago sabe cuidar de si. Tu és frágil.

Frágil? Eu? Depois de anos a engolir sapos e calar dores? Comecei a perceber que talvez fosse isso que ela queria: manter-me dependente dela para nunca ficar sozinha. Mas eu queria voar.

O Erasmus foi um ponto de viragem. Apesar dos telefonemas diários (e das mensagens constantes), consegui afastar-me fisicamente e ganhar alguma autonomia emocional. Fiz amigos de toda a Europa, apaixonei-me por Barcelona e por mim mesma. Quando voltei a Portugal, sentia-me outra pessoa.

Mas nada tinha mudado em casa. No primeiro jantar em família após o meu regresso, ela criticou o meu sotaque espanholado e disse que eu estava “diferente demais”. O Tiago riu-se e piscou-me o olho por baixo da mesa.

Comecei a procurar casa para sair de casa dela. Quando lhe contei, ela fez chantagem emocional: ameaçou adoecer, disse que não ia aguentar sozinha naquela casa enorme cheia de memórias do meu pai. Senti-me dividida entre o amor e o ressentimento.

Um dia, depois de mais uma discussão acesa sobre o Miguel (que entretanto se tinha tornado meu noivo), fechei-me no quarto e escrevi-lhe uma carta. Expliquei tudo: o quanto a amava, mas também o quanto precisava de espaço para crescer; que não podia viver eternamente sob as suas asas; que ser mãe não era sinónimo de controlar cada passo da filha.

Ela não respondeu à carta durante dias. O silêncio era ensurdecedor. Até que uma noite entrou no meu quarto sem bater à porta (como sempre fazia) e sentou-se na cama ao meu lado.

— Inês… Eu só tenho medo de te perder como perdi o teu pai. — disse ela baixinho, com lágrimas nos olhos.

Nesse momento percebi: o controlo dela era medo disfarçado de amor. Medo da solidão, medo do desconhecido, medo de me ver sofrer.

Hoje vivo com o Miguel num pequeno apartamento em Lisboa. A relação com a minha mãe ainda é difícil; há dias em que quase não falamos e outros em que ela me liga cinco vezes seguidas só para perguntar se comi bem ou se fechei a porta à chave.

Às vezes pergunto-me: será possível amar sem sufocar? Como encontrar o equilíbrio entre cuidar e controlar? E vocês… já sentiram este peso do amor materno? Como lidaram com isso?