Entre o Amor e o Caos: Quando a Filha do Meu Namorado Mudou a Minha Vida

— Outra vez, Sofia? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas sentindo o tremor nas palavras. O relógio marcava quase meia-noite e, mais uma vez, ouvi a chave rodar na porta. O meu namorado, Rui, olhou para mim com aquele ar de quem pede desculpa sem dizer nada. E lá estava ela, Inês, a filha dele, de mochila às costas e olhos vermelhos.

— Não tinha para onde ir — murmurou ela, evitando o meu olhar.

O silêncio caiu pesado entre nós. Eu sabia que Rui não ia conseguir dizer-lhe que não podia ficar. E eu? Eu sentia-me cada vez mais uma estranha na minha própria casa.

Quando conheci o Rui, há dois anos, ele foi honesto: “Tenho uma filha de 17 anos. A mãe dela vive em Braga, mas ela prefere Lisboa.” Achei bonito ele ser tão presente, tão dedicado. Mas nunca imaginei que isso significasse abrir mão da minha privacidade, do nosso espaço. No início, combinámos: Inês podia vir aos fins de semana alternados. Mas ultimamente, ela aparecia sempre que discutia com a mãe — ou com o namorado, ou com as amigas. E cada vez que isso acontecia, eu sentia que o chão me fugia dos pés.

Naquela noite, depois de Inês se fechar no quarto de hóspedes (o meu antigo escritório), sentei-me no sofá ao lado do Rui.

— Não podemos continuar assim — disse-lhe, baixinho.

Ele suspirou. — Ela está a passar uma fase difícil. Precisa de nós.

— Precisa de ti — corrigi. — Eu não sou mãe dela. Nem quero ser.

Rui ficou calado. O silêncio dele doía mais do que qualquer discussão.

No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei café, pus música baixa na cozinha. Inês apareceu de pijama, cabelo despenteado, e sentou-se à mesa sem dizer nada. O Rui tentou puxar conversa:

— Dormiste bem?

Ela encolheu os ombros. Eu respirei fundo e tentei sorrir.

— Queres torradas?

Ela abanou a cabeça. Levantou-se e foi para a sala, agarrada ao telemóvel. Senti-me invisível.

As semanas passaram e as visitas da Inês tornaram-se cada vez mais frequentes. Comecei a evitar ir para casa depois do trabalho. Ia ao ginásio, ficava horas na biblioteca ou inventava jantares com amigas. O Rui percebia, mas não dizia nada. Uma noite, cheguei mais cedo e ouvi vozes altas vindas da sala.

— Não tens nada a ver com isso! — gritava Inês.

— Tenho sim! — respondeu Rui. — Enquanto viveres aqui, há regras!

Parei à porta, sem saber se devia entrar ou fugir dali para sempre.

— A Sofia não manda em mim! — gritou ela.

Senti um nó na garganta. Entrei devagar.

— Ninguém está a mandar em ti, Inês — disse eu, tentando soar calma. — Só queremos viver em paz.

Ela olhou para mim como se eu fosse o inimigo.

— Tu nem devias estar aqui! Nem és da família!

O Rui tentou intervir, mas eu já estava de lágrimas nos olhos.

— Se calhar tens razão — murmurei antes de sair porta fora.

Fui dar uma volta pelo bairro, sem rumo. Sentei-me num banco de jardim e chorei baixinho. Lembrei-me da minha mãe dizer: “Quando te juntas a alguém com filhos, juntas-te à família toda.” Achei que estava preparada. Mas ninguém me avisou do vazio que é sentir-se sempre em segundo plano.

Quando voltei para casa, Rui estava à minha espera no corredor.

— Desculpa — disse ele. — Ela não devia ter dito aquilo.

— Não é só o que ela diz — respondi. — É tudo isto… Eu sinto que já não tenho lugar aqui.

Ele abraçou-me e prometeu que ia falar com ela. Mas as coisas não mudaram muito. Inês continuava a aparecer sem avisar, continuava a ignorar-me ou a responder torto. O Rui tentava ser mediador, mas acabava sempre por ceder aos caprichos dela.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem ia usar a máquina de lavar roupa (Inês tinha posto tudo dela a lavar sem perguntar), sentei-me sozinha na varanda e escrevi uma carta ao Rui:

“Amo-te. Mas não consigo viver assim. Preciso de sentir que também sou importante nesta casa. Preciso de limites. Preciso de ti comigo, não só como pai da Inês, mas como meu companheiro.”

Deixei a carta na mesa da sala e fui dormir ao sofá. No dia seguinte, Rui acordou cedo e sentou-se ao meu lado.

— Li a tua carta — disse ele, com os olhos marejados de lágrimas. — Não quero perder-te.

— Então precisamos de regras claras — respondi. — Não posso continuar a viver nesta incerteza.

Ele assentiu e prometeu falar com Inês e com a mãe dela para encontrarem uma solução melhor para todos.

Os dias seguintes foram tensos. Inês ficou furiosa quando soube das novas regras: só podia vir aos fins de semana combinados e teria de avisar sempre antes de aparecer. Durante semanas mal falou comigo ou com o pai. Mas aos poucos as coisas acalmaram-se. Começámos a ter jantares em família onde todos podiam falar (e ouvir). Houve lágrimas, pedidos de desculpa e até algumas gargalhadas inesperadas.

Hoje olho para trás e percebo que amar alguém é aceitar também os seus caos e imperfeições. Mas amar-nos a nós próprios é saber quando dizer basta.

Às vezes pergunto-me: quantas pessoas vivem presas entre o amor por alguém e o medo de perderem a si mesmas? E vocês? Já sentiram que estavam a desaparecer dentro da vossa própria casa?