Entre o Amor e o Arrependimento: A História de Miguel e Clara
— Miguel, não faças isso. Por favor. — A voz da Clara tremia, os olhos marejados de lágrimas, enquanto eu arrastava a mala pelo corredor do nosso pequeno apartamento em Benfica. O cheiro do café ainda pairava no ar, misturado ao perfume dela, tão familiar e reconfortante. Mas naquele momento, tudo parecia sufocante. Eu sentia-me preso, confuso, como se estivesse a viver a vida de outra pessoa.
“É agora ou nunca”, pensei, tentando convencer-me de que estava a fazer o certo. Mas será que estava? Será que alguma vez estive?
Conheci a Clara na faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Ela era tímida, mas tinha um sorriso que iluminava qualquer sala. Apaixonámo-nos entre livros e cafés baratos na Rua da Escola Politécnica. Quando decidimos juntar-nos, não tínhamos nada além de sonhos e uma velha máquina de café emprestada pela mãe dela. Os primeiros anos foram duros: eu trabalhava numa pequena editora durante o dia e fazia traduções à noite; ela dava explicações e ajudava numa papelaria. Mas juntos éramos invencíveis.
Casámo-nos numa tarde chuvosa de outubro, rodeados de amigos e família. O meu pai nunca aprovou a Clara — dizia que ela era demasiado simples para mim, que eu merecia alguém mais ambicioso. Mas eu não queria saber. Ou pelo menos achava que não queria.
Quando finalmente consegui abrir a minha própria editora, foi graças ao dinheiro que ambos poupámos durante anos. Clara esteve sempre ao meu lado: ajudou-me a escolher o nome, tratou da papelada, ficou noites sem dormir comigo a rever contratos e manuscritos. A editora cresceu devagarinho, mas com honestidade e trabalho árduo.
Foi nessa altura que conheci a Sofia.
Sofia era tudo o que Clara não era: extrovertida, ousada, cheia de ideias novas e um charme quase perigoso. Trabalhava numa agência de comunicação que colaborava connosco. No início era só trabalho, mas rapidamente as conversas se tornaram mais pessoais. Ela fazia-me sentir jovem outra vez, desejado, importante. Comecei a chegar mais tarde a casa, inventando reuniões e jantares de negócios.
Clara percebeu antes de mim que algo estava errado.
— Miguel, tu já não estás aqui — disse-me uma noite, enquanto eu fingia ler um relatório no sofá. — Não sei onde andas, mas não é comigo.
Não tive coragem de lhe contar naquele momento. Arrastei a mentira durante meses, até ao dia em que Clara encontrou uma mensagem no meu telemóvel. Não houve gritos nem cenas dramáticas; apenas silêncio e lágrimas contidas.
— Se é isso que queres… vai — murmurou ela, olhando para mim como se eu fosse um estranho.
E eu fui.
Os primeiros meses com a Sofia foram intensos: viagens espontâneas ao Porto, jantares em restaurantes caros na Baixa, noites em hotéis boutique com vista para o Tejo. Senti-me vivo como há muito não me sentia. Mas essa chama começou a apagar-se depressa demais. Sofia era imprevisível, exigente, queria sempre mais — mais atenção, mais dinheiro, mais aventuras. E eu comecei a sentir falta da calma da Clara, do seu abraço silencioso depois de um dia difícil, do cheiro do seu cabelo nas manhãs preguiçosas de domingo.
A editora começou a sofrer com as minhas ausências e distrações. Os funcionários notaram; alguns começaram a sair. O negócio entrou em declínio e os problemas financeiros acumularam-se. Sofia não queria saber dos meus problemas — queria festas e viagens.
Foi numa noite fria de janeiro que percebi o tamanho do meu erro. Estava sozinho no apartamento novo — Sofia tinha ido para Madrid com amigos — e olhei para as paredes nuas, sem fotografias nem memórias. Peguei no telemóvel e liguei à Clara.
— Olá…
— Miguel? O que queres?
— Precisava de falar contigo…
— Não sei se faz sentido.
— Por favor…
Aceitou encontrar-se comigo num café perto do Campo Pequeno. Quando entrou, senti um aperto no peito: estava mais magra, mas os olhos mantinham aquela luz doce que sempre me encantou.
— O que queres dizer-me? — perguntou ela, sem rodeios.
— Errei. Fui um idiota. Troquei tudo o que tínhamos por uma ilusão… Sinto tanto a tua falta…
Ela olhou para mim longamente antes de responder:
— Sabes o que dói mais? Não foi teres ido embora… Foi teres desistido de nós sem luta. Eu aguentei tudo contigo: as noites sem dormir, as contas atrasadas, os sonhos adiados… E tu trocaste isso por alguém que mal conhecias.
— Sei… Sei que não mereço perdão… Mas queria tentar recomeçar…
Ela abanou a cabeça devagar:
— Miguel… Eu aprendi a viver sem ti. Doeu muito, mas agora estou bem assim. Não posso voltar atrás.
Fiquei ali sentado depois dela sair, com as mãos trémulas e o coração despedaçado. Tentei ligar-lhe nos dias seguintes; enviei flores; escrevi cartas longas cheias de promessas vazias. Nunca respondeu.
O tempo passou devagar. Sofia acabou por me deixar também — disse que precisava de alguém “mais interessante”. A editora fechou portas pouco depois; vendi tudo para pagar dívidas e voltei para casa dos meus pais em Almada aos 38 anos.
A minha mãe olhava para mim com pena disfarçada; o meu pai nem falava comigo. Os amigos afastaram-se ou mudaram de assunto quando eu entrava na sala. Passei meses a tentar reconstruir-me: arranjei um emprego modesto numa livraria do bairro; comecei a correr ao fim da tarde para ocupar o vazio das noites longas.
Às vezes via Clara na rua: sorridente ao lado de amigas ou sozinha com um livro na mão. Nunca tive coragem de me aproximar outra vez.
Hoje olho para trás e pergunto-me: porque é que destruí tudo por uma paixão passageira? Porque é que só damos valor ao amor verdadeiro quando já é tarde demais?
Se pudesse voltar atrás faria tudo diferente… Mas será que mereço uma segunda oportunidade? E vocês — já sentiram este peso do arrependimento? O que fariam no meu lugar?