Entre o Amor e o Adeus: Um Casamento, Dois Destinos
— Inês, não faças isto. Por favor, filha, pensa bem! — A voz da minha mãe ecoava pelo corredor, abafada pela porta do meu quarto. Eu estava sentada na cama, o vestido de noiva pendurado à minha frente, branco como a folha onde escrevi as primeiras mensagens ao Miguel.
O meu coração batia descompassado. Lembrei-me da primeira vez que vi o nome dele aparecer no ecrã do telemóvel: “Miguel Silva enviou-lhe uma mensagem.” Era só mais um perfil no site de encontros, mas havia algo na forma como ele escrevia — um calor, uma ternura, uma urgência quase desesperada de ser ouvido. Em poucas semanas, já trocávamos confidências como velhos amigos. Ele falava-me das ruas de Braga, do cheiro a café torrado nas manhãs frias, das saudades do pai que partiu cedo demais. Eu contava-lhe dos meus dias cinzentos em Lisboa, da solidão de quem vive rodeada de gente mas sente um vazio impossível de preencher.
— Inês, estás a ouvir-me? — A minha mãe insistia, a voz embargada. — Não conheces esse rapaz. Nunca o viste! Como podes casar-te assim?
Eu queria responder-lhe que sim, que sabia o que estava a fazer. Mas será que sabia mesmo? O Miguel era uma presença constante no meu telemóvel, nas minhas noites insones, nos meus sonhos acordados. Mas nunca o tinha tocado, nunca lhe tinha sentido o cheiro, nunca lhe tinha olhado nos olhos sem um ecrã pelo meio.
Na véspera do casamento, o meu pai recusou-se a falar comigo. O meu irmão mais novo trancou-se no quarto dele, ouvindo música alta para não ter de enfrentar a vergonha da irmã mais velha a casar-se com um desconhecido. Só a minha avó me olhou nos olhos e disse:
— O amor é sempre um salto no escuro, menina. Mas às vezes caímos em chão firme.
A manhã do casamento chegou envolta em nevoeiro. O salão da quinta estava decorado com flores brancas e azuis, como eu sempre sonhara. Os convidados murmuravam entre si, alguns riam nervosamente, outros olhavam para mim com pena ou desdém. Senti-me uma atriz num palco improvisado.
Quando o Miguel chegou, o silêncio caiu sobre a sala. Ele era mais alto do que eu imaginara, o cabelo castanho claro caía-lhe sobre a testa e os olhos tinham uma tristeza que não reconheci das videochamadas. Aproximou-se de mim devagar, como se temesse assustar-me.
— Olá, Inês — disse ele, a voz baixa e rouca.
— Olá, Miguel — respondi, sentindo as mãos suadas dentro das luvas de renda.
O padre começou a cerimónia. As palavras soavam distantes: amor, respeito, fidelidade… Eu olhava para o Miguel e tentava encontrar ali o homem por quem me apaixonara nas mensagens trocadas às três da manhã.
Quando chegou a hora dos votos, ele hesitou. Olhou para mim com uma angústia profunda e sussurrou:
— Preciso de te contar uma coisa.
O salão pareceu encolher à minha volta. Senti todos os olhares cravados em nós.
— Agora? — murmurei entre dentes.
Ele assentiu e puxou-me para um canto discreto do jardim. O frio da manhã entrava-me pelos ossos.
— Inês… eu não fui completamente honesto contigo — começou ele, evitando o meu olhar. — Eu… eu perdi o emprego há dois meses. Estou cheio de dívidas. E… há alguém na minha vida. Não é como tu pensas…
As palavras dele caíam sobre mim como pedras. Senti o chão fugir-me dos pés.
— Como assim? — perguntei, a voz tremendo.
— Ela chama-se Sofia. Tivemos uma relação complicada… ela apareceu ontem à noite em minha casa. Disse-me que está grávida.
O mundo desabou à minha volta. As lágrimas começaram a cair sem controlo.
— Porque é que não me disseste antes? Porque é que vieste até aqui?
Ele passou as mãos pelo rosto, desesperado.
— Eu queria acreditar que podia começar de novo contigo. Que tudo isto era real… Mas não consigo fugir do passado.
Ficámos ali parados durante minutos que pareceram horas. O frio cortava-me a pele e o coração batia tão alto que mal ouvia os murmúrios vindos do salão.
Voltei para dentro sozinha. Os convidados olhavam-me em silêncio; alguns já sabiam, outros adivinhavam pelo meu rosto devastado. A minha mãe correu para mim e abraçou-me com força.
— Vamos para casa, filha — sussurrou ela ao meu ouvido.
No carro, ninguém falou durante o caminho inteiro. Só quando chegámos ao prédio é que o meu pai me olhou nos olhos pela primeira vez em semanas.
— Todos erramos, Inês — disse ele com uma voz estranhamente suave. — Mas só quem arrisca é que vive de verdade.
Os dias seguintes foram um nevoeiro espesso de vergonha e tristeza. Recebi mensagens de amigos e familiares: uns solidários, outros críticos ou até cruéis. O Miguel tentou ligar-me várias vezes; nunca atendi.
Demorei meses a voltar a sair à rua sem sentir todos os olhares sobre mim. A minha avó fazia chá e sentava-se comigo na varanda ao fim da tarde.
— O amor não é só felicidade — dizia ela. — É também dor e aprendizagem.
Hoje olho para trás e vejo aquela rapariga vestida de branco como alguém distante. Aprendi que nem sempre conhecemos quem está do outro lado do ecrã; que as palavras podem ser doces mas esconder tempestades; que às vezes precisamos cair para aprender a levantar-nos.
Pergunto-me: quantos de nós já saltaram no escuro por amor? E quantos tiveram coragem de recomeçar depois da queda?