Entre o Amor e a Solidão: Quando a Família se Torna um Labirinto
— Mãe, não podes simplesmente aparecer assim, sem avisar! — A voz da minha filha, Sofia, ecoou pelo corredor assim que abri a porta do seu apartamento em Lisboa. O olhar dela era duro, quase estranho, como se eu fosse uma intrusa na sua vida.
Senti o peso da mala na mão e do cansaço nos ombros. Respirei fundo, tentando não deixar as lágrimas caírem ali mesmo, à frente dela. — Desculpa, filha. Eu só… precisava de um pouco de paz. Em casa, com a tua cunhada, já não aguentava mais.
Sofia suspirou, desviando o olhar. — Entra, mas não faças barulho. O Miguel está a dormir e amanhã tem reunião cedo.
Entrei devagarinho, sentindo-me pequena naquele espaço moderno e arrumado. Lembrei-me de quando Sofia era criança e corria para os meus braços sempre que tinha um pesadelo. Agora, parecia que eu é que era o pesadelo dela.
A verdade é que tudo começou há meses, quando o meu filho, Nuno, trouxe a Ana para viver connosco. No início, tentei ser compreensiva. Ana era jovem, cheia de ideias modernas sobre como gerir uma casa — ideias que chocavam com as minhas. Não gostava de comer sopa ao jantar, achava que passar a ferro era coisa do passado e deixava a loiça acumular até ao fim do dia. Pequenas coisas, eu sei. Mas cada uma delas era como uma picada.
— Maria, não te importas de lavar os teus próprios pratos? — perguntou-me Ana certa noite, enquanto mexia no telemóvel à mesa.
— Sempre lavei a loiça de todos nesta casa — respondi, tentando sorrir.
— Pois, mas agora somos todos adultos aqui. Cada um faz o seu — disse ela, sem levantar os olhos.
Nuno olhou para mim com aquele ar de quem não quer problemas. — Mãe, é só uma questão de hábito. Não leves a mal.
Levei sim. Levei para dentro do peito cada palavra atravessada. Senti-me inútil na minha própria casa. O meu marido já tinha partido há três anos e eu agarrava-me aos meus filhos como quem se agarra a uma tábua no meio do mar revolto.
As discussões foram-se acumulando. Ana implicava com tudo: com o cheiro do meu perfume, com as minhas novelas ao fim da tarde, com as minhas conversas ao telefone com as vizinhas. Até o meu croché parecia incomodá-la.
Uma noite, ouvi-a dizer ao Nuno:
— A tua mãe precisa de perceber que isto já não é só a casa dela.
Foi como levar uma bofetada. Passei a dormir mal, a acordar cedo para evitar cruzar-me com ela na cozinha. Senti-me uma sombra na minha própria vida.
Foi então que decidi ligar à Sofia. — Filha, posso ir passar uns dias contigo? Preciso de sair daqui.
Do outro lado da linha, silêncio. Depois: — Está bem, mãe… mas só uns dias, sim?
Agora estava ali, sentada no sofá da sala dela, enquanto Sofia preparava um chá sem dizer palavra. O Miguel apareceu à porta do quarto em cuecas e olhou para mim como se eu fosse um móvel fora do sítio.
— Olá, dona Maria… — murmurou antes de desaparecer outra vez.
Sofia voltou com o chá e sentou-se à minha frente. — Mãe, tens de perceber que aqui as coisas são diferentes. Eu e o Miguel temos rotinas…
— Eu não quero incomodar — interrompi, sentindo o nó na garganta apertar.
Ela pousou a chávena na mesa com força demais. — Não é isso… Mas tu tens de aprender a viver sozinha. Não podes depender sempre de nós.
Olhei para as mãos enrugadas no colo. Tantas vezes as usei para cuidar deles: febres altas, joelhos esfolados, corações partidos. Agora eram mãos inúteis.
— Sofia… Eu só queria sentir-me em casa outra vez.
Ela desviou o olhar para a janela. — Eu cresci, mãe. O Nuno também. Tu tens de encontrar uma vida para ti.
Naquela noite dormi pouco. O colchão era duro e os barulhos da cidade mantinham-me acordada. Pensei no passado: nos domingos em família, nas tardes de risos e bolos acabados de fazer. Onde é que tudo se perdeu?
No dia seguinte tentei ajudar: arrumei a cozinha, fiz sopa para o jantar. Quando Sofia chegou do trabalho olhou para mim com irritação.
— Mãe! Eu disse-te que não era preciso fazer nada! Agora nem sei onde puseste as coisas!
Pedi desculpa baixinho e fui fechar-me no quarto improvisado.
Os dias passaram devagar. Sofia estava sempre ocupada; Miguel quase não falava comigo. Senti-me cada vez mais invisível.
Uma tarde ouvi Sofia ao telefone com uma amiga:
— A minha mãe está cá em casa… Sim, outra vez problemas com a Ana… Não sei o que fazer com ela…
Fui até à varanda e deixei as lágrimas correrem livremente pela primeira vez em muitos anos.
No fim da semana decidi voltar para casa. Sofia abraçou-me à porta mas foi um abraço frio, apressado.
No comboio de regresso pensei em tudo o que tinha acontecido. Senti-me perdida entre dois mundos: já não pertencia ao dos meus filhos nem ao meu próprio lar.
Quando cheguei a casa encontrei Ana na sala a ver televisão.
— Voltou cedo… — disse ela sem tirar os olhos do ecrã.
Subi para o meu quarto sem responder.
Agora escrevo estas palavras sentada na minha cama, rodeada pelas fotografias antigas dos meus filhos pequenos. Pergunto-me onde errei; se fui demasiado presente ou demasiado ausente; se devia ter sido mais dura ou mais permissiva; se algum dia voltarei a sentir-me parte da família que criei com tanto amor.
Será que todas as mães acabam assim? Ou será que ainda há tempo para encontrar um novo lugar no mundo? Gostava de saber o que fariam no meu lugar.