Entre o Amor e a Liberdade: O Silêncio de Maria Clara

— Maria Clara, não achas que já chega de estares sozinha? — A voz da minha irmã, Teresa, ecoou pela cozinha enquanto mexia o café com impaciência. Era o meu 60º aniversário e, como sempre, a família reunira-se em minha casa. O bolo de laranja ainda fumegava na mesa, mas o cheiro doce não conseguia disfarçar o peso das palavras.

Olhei para ela, tentando sorrir. — Teresa, sozinha? Tenho-vos a todos aqui. — Mas sabia que não era disso que falava. Desde que o António partira, há já dez anos, todos pareciam esperar que eu procurasse outro companheiro. Como se a vida de uma mulher só tivesse sentido ao lado de um homem.

O meu filho mais velho, Miguel, juntou-se à conversa. — Mãe, tu és nova! Ainda tens tanto para viver. Não queres voltar a ser feliz?

Feliz. Como se a felicidade fosse um estado que dependesse de alguém ao nosso lado. Lembrei-me do António, do nosso casamento de quase trinta anos: os jantares silenciosos depois das discussões, as noites em que me deitava cedo só para não ter de falar. Claro que houve momentos bons — as férias em Vila Nova de Milfontes, os risos partilhados quando os miúdos eram pequenos — mas também houve solidão a dois, uma solidão mais pesada do que esta que agora me acusavam de viver.

— Miguel, eu sou feliz — disse baixinho. Mas ninguém pareceu ouvir.

A conversa desviou-se para trivialidades: o novo emprego da minha neta Inês, as dores nas costas do meu cunhado Joaquim. Mas eu fiquei ali, presa naquela pergunta: será que estou mesmo feliz?

Quando todos foram embora e a casa voltou ao seu silêncio habitual, sentei-me na varanda com um copo de vinho tinto. O céu estava limpo e as luzes da cidade brilhavam ao longe. Lembrei-me de quando era jovem e sonhava com um amor arrebatador, daqueles dos filmes antigos portugueses. Sonhava com cartas apaixonadas, promessas eternas e finais felizes.

A realidade foi outra. Casei cedo porque era o esperado. O António era trabalhador, honesto, mas nunca foi dado a grandes gestos ou palavras doces. A vida foi passando entre rotinas e obrigações: cuidar dos filhos, da casa, dos pais dele quando adoeceram. Quando finalmente nos vimos sozinhos outra vez, já não sabíamos conversar sem discutir.

Depois da morte dele, senti-me perdida. Os primeiros meses foram um nevoeiro de saudade e culpa: será que podia ter sido melhor esposa? Será que devia ter tentado mais? Mas com o tempo fui descobrindo pequenos prazeres: ler até tarde sem ninguém a reclamar da luz acesa; viajar com as amigas para o Gerês; aprender a pintar aquarelas numa oficina da junta de freguesia.

Comecei a perceber que gostava desta liberdade tardia. Não tinha de dar satisfações a ninguém, podia gastar o dinheiro como quisesse — até comprei um vestido vermelho só porque sim! — e os meus dias eram meus outra vez.

Mas nem todos entendiam isso. As amigas casadas olhavam-me com pena ou inveja disfarçada. — Não tens medo de envelhecer sozinha? — perguntava a Lurdes enquanto ajeitava o cabelo pintado de loiro.

— Sozinha estou eu muitas vezes mesmo quando estou acompanhada — respondi-lhe uma vez. Ela riu-se nervosa e mudou de assunto.

Os meus filhos tentaram apresentar-me amigos viúvos ou divorciados. Houve jantares constrangedores com homens como o Sr. Manuel do terceiro andar — simpático mas demasiado agarrado à rotina dele — ou o Dr. Álvaro da farmácia, que só falava do Benfica e dos netos.

Nunca senti aquele friozinho na barriga outra vez. E comecei a perguntar-me: será que ainda quero isso? Ou será que me habituei demasiado à minha própria companhia?

Uma noite, depois de um desses encontros forçados, tive uma discussão feia com a minha filha mais nova, Sofia.

— Mãe, tu não podes desistir do amor! — gritou ela, lágrimas nos olhos.

— Sofia, não é desistir! É escolher! Eu escolho estar assim porque me sinto bem! — respondi-lhe, sentindo uma raiva antiga misturada com tristeza.

Ela saiu batendo a porta e eu fiquei ali, sozinha na sala iluminada apenas pela televisão ligada no telejornal.

Nessa noite chorei. Chorei por tudo o que foi e pelo que nunca seria. Chorei por não conseguir explicar à minha família que o amor pode mudar de forma com o tempo; que às vezes amar é aceitar a própria solidão e fazer dela companhia.

Os meses passaram e fui aprendendo a lidar com as perguntas indiscretas dos vizinhos e os olhares curiosos das amigas. Fui aprendendo a dizer “não” sem culpa e a dizer “sim” às pequenas coisas que me faziam feliz: um passeio à beira-mar sozinha; um café demorado na esplanada do bairro; tardes inteiras a pintar sem pressa.

No Natal desse ano, reuni toda a família em minha casa outra vez. Preparei tudo com carinho: bacalhau à Brás, rabanadas e até um arroz doce como fazia a minha mãe.

Durante o jantar, Miguel levantou-se e fez um brinde:

— À nossa mãe! Que nos ensina todos os dias que ser feliz é uma escolha!

Senti os olhos marejados de lágrimas e percebi que talvez eles começassem finalmente a entender.

Agora, aos 62 anos, olho para trás sem arrependimentos. Sei que amei e fui amada à minha maneira. Sei que fiz escolhas difíceis e paguei o preço por elas. Mas acima de tudo sei que encontrei paz na minha própria companhia.

Às vezes pergunto-me: será egoísmo querer esta liberdade? Será possível ser verdadeiramente feliz sem partilhar a vida com alguém? Ou será que a felicidade está mesmo em aprender a gostar de nós próprios primeiro?

E vocês? Já sentiram este dilema entre o desejo de companhia e o prazer da liberdade?