Entre o Amor e a Justiça: A Decisão Mais Difícil da Minha Vida
— Mãe, não podes fazer isso comigo! — gritou o João, com os olhos marejados de lágrimas, a voz embargada entre a raiva e a incredulidade.
A sala estava mergulhada numa tensão quase palpável. O relógio antigo da minha avó batia as horas, indiferente ao caos que se desenrolava ali. A minha filha, Sofia, sentada no sofá, olhava para mim em silêncio, como se esperasse que eu recuasse, que dissesse que era tudo uma brincadeira de mau gosto. Mas eu não podia. Não desta vez.
Fechei os olhos por um instante, tentando encontrar forças onde já não sabia existir. O João sempre foi o mais impulsivo dos dois, o mais parecido comigo. Talvez por isso nos magoássemos tanto. Cresci em Lisboa, filha única de pais trabalhadores, e aprendi cedo que a vida não oferece garantias. Quando me casei com o António, achei que tinha finalmente encontrado estabilidade. Mas a estabilidade revelou-se uma miragem: ele saiu de casa quando o João tinha dez anos e a Sofia apenas sete.
Fiquei sozinha com duas crianças e um salário de empregada de limpeza. O António nunca foi mau homem; pagava a pensão certinha, vinha buscar os miúdos aos fins-de-semana, mas nunca soube o que era acordar às cinco da manhã para limpar escritórios e ainda ter forças para ajudar nos trabalhos de casa à noite. Houve meses em que só a pensão alimentícia nos impediu de passar fome.
O João cresceu revoltado. Sempre achou que o pai era o herói e eu, a vilã que impedia as visitas extras ou reclamava das faltas de pagamento. A Sofia era diferente: mais calada, mais observadora, sempre pronta a ajudar-me a estender a roupa ou a preparar o jantar. Mas o João… ah, o João! Quantas vezes me gritou que eu era egoísta? Quantas vezes bateu com a porta do quarto porque não lhe comprei as sapatilhas da moda?
— Não é justo! — insistiu ele agora, já adulto, mas com o mesmo olhar de menino zangado. — Trabalhaste uma vida inteira e agora vais dar tudo à Sofia? Só porque ela ficou do teu lado?
Respirei fundo. O meu coração batia descompassado. Não era uma questão de favoritismo. Era justiça.
— João, tu sabes o que fizeste — respondi, tentando manter a voz firme. — Sabes quantas vezes te pedi para me ajudares? Quantas vezes te pedi para cuidares da tua irmã quando eu estava doente? E tu…
Ele virou-me as costas, murmurando algo ininteligível. Lembrei-me da noite em que cheguei a casa com febre alta e encontrei a Sofia a chorar na cozinha porque o irmão tinha saído para ir beber com os amigos e a deixara sozinha.
A vida foi passando. O João saiu cedo de casa, foi viver com amigos em Almada, arranjou empregos temporários e nunca parou muito tempo em lado nenhum. A Sofia ficou comigo até aos vinte e seis anos, ajudou-me quando tive aquele problema no joelho e quase não podia andar. Foi ela quem me levou ao hospital, quem me fez sopa quando eu não conseguia levantar-me da cama.
O António morreu há três anos. Deixou uma pequena poupança aos filhos, dividida em partes iguais. Foi nessa altura que comecei a pensar no meu próprio testamento. O apartamento onde vivemos é modesto, mas é tudo o que tenho. E agora, com setenta anos feitos, sei que não vou durar para sempre.
Falei com o advogado. Ele explicou-me que em Portugal há quotas obrigatórias para os herdeiros legítimos. Mas também me disse que posso deixar uma parte disponível à Sofia, como reconhecimento pelo apoio incondicional.
— Mãe, eu não quero nada — disse-me ela uma noite, enquanto lavávamos a loiça juntas. — Só quero que fiques bem.
Mas eu sabia que ela merecia mais do que palavras bonitas. Merecia segurança. O João nunca quis saber das contas da casa ou das minhas dores nas costas. Só aparecia quando precisava de dinheiro ou quando estava zangado com alguma namorada.
Naquela noite do confronto final, olhei para ele e vi não só o meu filho rebelde, mas também um homem perdido, incapaz de perceber as consequências dos seus atos.
— Não é uma questão de amor — disse-lhe baixinho. — Amo-te tanto quanto amo a tua irmã. Mas tenho de ser justa.
Ele atirou-me um olhar magoado.
— Então justiça é castigar-me? É deixar-me sem nada?
Senti um nó na garganta.
— Justiça é reconhecer quem esteve ao meu lado quando precisei. Tu escolheste outro caminho, João.
A Sofia levantou-se do sofá e veio abraçar-me por trás. Senti-lhe as lágrimas caírem-me no ombro.
— Mãe… não faças isto por mim — sussurrou ela.
Mas eu sabia que já não havia volta atrás.
Os dias seguintes foram um silêncio pesado em casa. O João deixou de me ligar. A Sofia tentava animar-me com pequenas surpresas: um bolo feito por ela, flores do jardim da vizinha Dona Emília. Mas eu sentia-me vazia.
Comecei a duvidar da minha decisão. Será que estava a ser dura demais? Será que um dia ele perceberia? Lembrei-me das noites em claro, dos sacrifícios calados, das vezes em que tive de escolher entre pagar a renda ou comprar comida melhor para eles.
Uma tarde chuvosa, bati à porta do João em Almada. Ele abriu-a com ar cansado.
— Vieste dizer-me outra vez que sou um falhado?
— Não — respondi, segurando-lhe as mãos frias nas minhas. — Vim dizer-te que ainda vais a tempo de mudar.
Ele chorou como nunca tinha visto antes. Abraçámo-nos ali mesmo no corredor húmido do prédio velho.
Hoje escrevo esta história sem saber se fiz tudo certo ou tudo errado. Sei apenas que tentei ser justa com os dois filhos que amo mais do que tudo neste mundo.
Será que algum dia os filhos percebem verdadeiramente os sacrifícios dos pais? E vocês, fariam diferente? O que é mais importante: justiça ou igualdade?