Entre o Amor e a Injustiça: Quando a Preferência Familiar Destrói a Confiança

— Não percebes, mãe? — perguntei, a voz a tremer entre a raiva e o desespero. — Porque é que o Tiago merece tudo e eu nada?

Ela ficou em silêncio, os olhos fixos na chávena de chá que segurava com as duas mãos. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite, mas o tempo parecia suspenso entre nós. O cheiro do pão torrado ainda pairava no ar, misturado com o aroma do café frio. O Tiago já tinha saído há horas, depois de mais uma discussão abafada, deixando-me sozinho com ela e com as palavras que nunca tinha coragem de dizer.

Desde pequeno que sentia que havia algo de diferente na forma como a minha mãe olhava para nós. Eu era o filho mais velho, o que tirava boas notas, o que nunca dava problemas. O Tiago era o rebelde, o que faltava às aulas, o que chegava tarde a casa e fazia a mãe chorar. Mas, por mais que eu tentasse ser perfeito, era sempre ele quem recebia os abraços mais longos, os sorrisos mais quentes. Eu dizia a mim mesmo que era imaginação minha. Que todas as mães têm formas diferentes de mostrar amor.

Mas naquela noite, tudo se tornou impossível de ignorar. O Tiago tinha perdido o emprego outra vez — a terceira vez em dois anos — e a mãe, sem hesitar, transferiu-lhe cinco mil euros para pagar as dívidas e começar de novo. Eu soube por acaso, quando vi a mensagem no telemóvel dela. Não foi preciso perguntar; ela confirmou tudo com um encolher de ombros.

— O teu irmão precisa de ajuda — disse ela, como se fosse óbvio. — Tu tens o teu trabalho, a tua casa… Estás bem.

— Estou bem? — repeti, quase a rir-me da ironia. — Sabes quanto me custou chegar aqui? Sabes quantas vezes precisei de ajuda e nunca pedi porque não queria preocupar-te?

Ela não respondeu. O silêncio dela era uma parede contra a qual bati vezes sem conta ao longo dos anos. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim, misturada com uma tristeza tão funda que me cortava a respiração.

Lembrei-me da infância: dos natais em que o Tiago recebia sempre o presente maior, das vezes em que eu ficava doente e ela dizia “o teu irmão está pior”, das tardes em que ficava sozinho a fazer os trabalhos de casa enquanto ela ia buscá-lo à esquadra ou à escola porque ele tinha arranjado confusão outra vez.

— Não é justo — murmurei, mais para mim do que para ela.

Ela levantou finalmente os olhos para mim. Vi neles um cansaço antigo, mas também uma espécie de culpa que nunca tinha reparado antes.

— Dário… Eu sei que não é fácil para ti entenderes. Mas o Tiago… ele sempre foi mais frágil. Sempre precisou mais de mim.

— E eu? Nunca precisei? — perguntei, sentindo as lágrimas ameaçarem-me os olhos.

Ela estendeu a mão por cima da mesa, mas eu recuei instintivamente. Não queria aquele gesto agora; queria respostas, queria justiça.

Os dias seguintes foram um nevoeiro de emoções contraditórias. No trabalho, mal conseguia concentrar-me. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu respondia com um sorriso falso. Em casa, olhava para as paredes nuas do meu pequeno apartamento em Lisboa e sentia-me mais sozinho do que nunca.

O Tiago ligou-me uma vez, a voz animada como se nada tivesse acontecido.

— Mano, obrigado por não fazeres drama com isto da mãe. Preciso mesmo de recomeçar. Sabes como é…

Quis gritar-lhe ao telefone. Quis dizer-lhe tudo o que me ia na alma: que estava farto de ser o filho invisível, farto de ver sempre as portas fechadas enquanto ele recebia todas as segundas oportunidades do mundo. Mas limitei-me a responder:

— Espero que desta vez consigas mesmo mudar.

Desliguei antes que ele pudesse responder.

Os dias passaram e comecei a evitar ir a casa da mãe aos domingos. Ela mandava mensagens preocupadas: “Estás bem? Sentes-te doente?” Eu respondia com evasivas: “Muito trabalho” ou “Preciso de descansar”. Mas a verdade é que não conseguia olhar para ela sem sentir aquela mistura amarga de amor e ressentimento.

Uma noite, depois de um dia particularmente difícil no escritório — o chefe tinha-me chamado à atenção por um erro mínimo — sentei-me no sofá e deixei finalmente as lágrimas correrem. Senti-me ridículo: um homem feito, com trinta e cinco anos, a chorar por causa da mãe. Mas não era só isso; era tudo o que vinha acumulando desde criança. A sensação de nunca ser suficiente, de nunca ser visto realmente.

Comecei a escrever uma carta à minha mãe. Queria dizer-lhe tudo: como me sentia esquecido, como doía ver sempre o Tiago em primeiro lugar. Escrevi páginas e páginas durante horas, rasgando folhas sempre que as palavras me pareciam demasiado duras ou demasiado fracas.

No fim, não tive coragem de lhe entregar nada.

O Natal aproximava-se e sabia que teria de enfrentar tudo outra vez. A família reunida à volta da mesa, os risos forçados, as conversas superficiais sobre futebol ou política para evitar falar do que realmente importava.

Na noite da consoada, cheguei atrasado propositadamente. O Tiago já lá estava, claro, sentado no lugar do costume ao lado da mãe, rindo-se alto como se nada no mundo lhe pesasse nos ombros. Quando entrei, todos olharam para mim como se fosse um estranho.

Durante o jantar mal falei. Observei-os: a mãe a servir-lhe mais bacalhau, o pai (sempre ausente nas discussões) a fingir não ver nada. Senti-me deslocado na minha própria família.

Depois do jantar, fui até à varanda fumar um cigarro — hábito antigo que só ressuscitava em noites difíceis. A mãe veio ter comigo pouco depois.

— Dário… — começou ela, hesitante. — Sei que estás magoado comigo.

Olhei para ela sem dizer nada.

— Não sei como te explicar… Sempre tive medo pelo Tiago. Tu eras forte demais para precisares de mim.

Ri-me amargamente.

— Ninguém é forte assim tanto tempo sem se partir por dentro.

Ela ficou calada durante um longo momento.

— Desculpa — disse finalmente. — Sei que falhei contigo muitas vezes.

As palavras dela eram sinceras mas insuficientes. Não podiam apagar anos de ausência emocional nem devolver-me aquilo que nunca tive: sentir-me amado sem condições.

Naquela noite dormi mal. Sonhei com a infância: eu e o Tiago a brincar no quintal da casa dos avós em Santarém; ele caía e chorava alto até alguém vir acudir; eu caía em silêncio e levantava-me sozinho.

No dia seguinte decidi procurar ajuda profissional. Marquei consulta com uma psicóloga perto do trabalho. Nas primeiras sessões quase não conseguia falar; sentia vergonha de admitir aquela dor tão antiga e tão infantil.

Mas aos poucos fui percebendo: não era só sobre dinheiro ou gestos concretos; era sobre reconhecimento, sobre sentir que também eu tinha direito ao amor da minha mãe sem ter de ser perfeito ou invisível.

Com o tempo comecei a perdoar — não por ela merecer necessariamente esse perdão, mas porque eu precisava libertar-me daquele peso para poder viver em paz comigo mesmo.

Hoje ainda há dias em que me sinto revoltado quando vejo o Tiago falhar outra vez e receber sempre mais uma oportunidade. Mas já não deixo isso definir quem sou ou como vivo os meus dias.

Às vezes pergunto-me: quantos filhos há por aí a viver na sombra dos irmãos preferidos? Quantos carregam feridas invisíveis por nunca terem sido vistos realmente? Talvez partilhar isto ajude outros a perceberem que não estão sozinhos nesta dor silenciosa.