Entre o Amor e a Família: Quando a Minha Mãe Escolheu Viver para Si Mesma

— Mãe, podes vir buscar o Tomás à escola hoje? — perguntei, já com a voz cansada, enquanto tentava equilibrar o telemóvel entre o ombro e o ouvido e, ao mesmo tempo, impedir a Leonor de desenhar na parede da sala.

Do outro lado da linha, ouvi um suspiro breve. — Filha, hoje não posso mesmo. Combinei um jantar com o António. Lembras-te dele? Aquele senhor simpático do grupo de caminhadas.

Fiquei em silêncio por uns segundos. O António. O novo namorado da minha mãe. Desde que se reformou da escola primária onde foi professora durante trinta anos, a minha mãe parecia ter descoberto uma nova juventude. Saía para dançar, fazia caminhadas, ia a jantares e, ultimamente, namorava. E eu… eu sentia-me cada vez mais sozinha.

— Mas mãe… — tentei argumentar, sentindo o nó na garganta apertar — eu precisava mesmo de ti hoje. O Miguel está em Lisboa em trabalho e eu tenho uma reunião importante às cinco. Não sei como vou conseguir.

— Filha, eu entendo, mas também preciso de tempo para mim. Passei a vida toda a cuidar dos outros. Agora quero cuidar de mim um bocadinho — respondeu ela, com aquela voz doce que sempre usava quando queria que eu entendesse o lado dela.

Desliguei o telefone sem dizer mais nada. Senti-me egoísta por querer que ela estivesse sempre disponível para mim e para os meus filhos. Mas também me sentia traída. Afinal, não era suposto as avós estarem sempre presentes? Não era isso que via nas famílias das minhas amigas? Comecei a chorar baixinho enquanto limpava as mãos da Leonor com uma toalhita.

Naquela noite, depois de deitar as crianças, sentei-me no sofá com uma chávena de chá e liguei à minha irmã mais velha, a Sofia.

— Achas normal isto? A mãe só pensa nela! — desabafei assim que ela atendeu.

A Sofia suspirou do outro lado. — Olha, Ana, eu percebo-te. Mas também percebo a mãe. Ela deu tudo por nós. Agora quer viver um bocadinho. Não achas que tem direito?

— Mas eu preciso dela! — insisti, sentindo-me uma criança outra vez.

— E ela precisa de si própria — respondeu a Sofia com firmeza.

Fiquei a pensar nas palavras da minha irmã durante horas. Lembrei-me da minha infância: da mãe sempre presente nas festas da escola, das noites em que ficava acordada comigo quando tinha febre, dos bolos ao domingo. Lembrei-me também do pai, que morreu cedo demais e deixou um vazio enorme nas nossas vidas. A mãe nunca mais namorou depois disso… até agora.

No dia seguinte, ao deixar o Tomás na escola à pressa e quase atropelar um ciclista na rotunda do bairro, senti-me uma péssima mãe e uma péssima filha. Liguei à minha mãe outra vez.

— Mãe… desculpa por ontem. Acho que estou só cansada — disse-lhe, tentando não chorar outra vez.

Ela sorriu do outro lado da linha. — Eu sei, filha. Mas sabes… eu também estive cansada muitos anos. Agora quero sentir-me viva outra vez. Não deixes de me pedir ajuda quando precisares, mas tenta perceber quando não posso.

Nesse fim de semana fomos almoçar todas juntas: eu, a Sofia, os meus filhos e a mãe. O António apareceu no fim do almoço com um ramo de flores para ela e um chocolate para cada neto. Vi a felicidade nos olhos da minha mãe e senti uma pontada de inveja misturada com orgulho.

Durante o café, a Sofia perguntou:

— Mãe, tens saudades dos tempos em que eras só nossa?

A mãe sorriu tristemente. — Tenho saudades vossas todos os dias. Mas agora também tenho saudades de mim mesma… daquela miúda que gostava de dançar e rir sem pensar em horários ou responsabilidades.

O Tomás interrompeu-a:

— Avó, vais brincar connosco hoje?

Ela olhou para ele com ternura e respondeu:

— Hoje não posso, querido. Mas amanhã venho buscar-te à escola e vamos ao parque, está bem?

Vi nos olhos do meu filho uma aceitação tranquila que me surpreendeu. Talvez fosse eu quem precisava aprender a aceitar.

Naquela noite escrevi no meu diário: “A minha mãe escolheu ser feliz depois de tantos anos a viver para os outros. Será egoísmo ou coragem? E eu… serei capaz de lhe dar essa liberdade sem me sentir abandonada?”

Às vezes pergunto-me: quantas mães se esquecem de si próprias em nome dos filhos? E quantas filhas conseguem aceitar que as mães também têm direito a recomeçar? Se fosse convosco… conseguiriam? O que é ser uma boa mãe ou uma boa filha afinal?