Entre o Amor e a Dívida: O Peso de Alimentar os Meus
— Arianna, tu não podes continuar assim! — gritou a minha mãe, Vitória, enquanto eu tentava acalmar o pequeno Tomás, que chorava no meu colo. O cheiro do arroz queimado invadia a cozinha minúscula do meu T2 em Chelas, e eu sentia o suor escorrer-me pela testa. — Tens quatro filhos, filha! Como é que vais dar conta do recado? — continuou ela, com aquela voz que misturava preocupação e julgamento.
A minha cabeça latejava. Não dormia há três noites seguidas. Entre o trabalho de limpezas que arranjei à pressa e as birras da Leonor, que agora se recusava a ir à escola porque dizem que ela cheira a mofo, sinto-me a afundar. Olhei para a minha mãe, cansada de ouvir sempre o mesmo discurso, mas sem forças para responder.
— Mãe, eu faço o que posso. Não vês? — murmurei, tentando não chorar. Mas ela não se calava.
— O teu pai e eu sempre te avisámos. O Rui nunca foi homem para ti. Agora olha: deixou-te sozinha com quatro bocas para alimentar! — O nome dele era como um soco no estômago. Rui desaparecera há dois anos, deixando-me com dívidas e promessas vazias. Desde então, cada dia era uma luta para pôr comida na mesa.
O frigorífico fazia um barulho estranho, como se também ele estivesse prestes a desistir. Abri-o: meio pacote de leite, dois iogurtes fora de prazo e uma caixa de ovos rachados. Fechei-o rapidamente, como se assim pudesse esconder a vergonha.
— Mãe, por favor… — pedi, mas ela já estava a remexer na carteira.
— Toma lá vinte euros. Compra carne decente para os miúdos. E vê se não gastas tudo em porcarias! — disse ela, empurrando-me a nota para a mão.
Senti-me pequena. Humilhada. Mas aceitei o dinheiro porque sabia que não tinha escolha.
Quando ela saiu, sentei-me à mesa e olhei para os meus filhos: Leonor, 10 anos, olhos tristes; Tomás, 7 anos, sempre agarrado ao meu braço; Matilde e Simão, gémeos de 3 anos, brincando no chão com tampas de panelas. O silêncio deles era pesado.
— Mãe, amanhã posso levar pão com chocolate para a escola? Como a Mariana? — perguntou Leonor.
Sorri-lhe, mas por dentro doía-me tudo.
— Vamos ver, filha. Se calhar amanhã há uma surpresa — menti.
À noite, depois de todos adormecerem, sentei-me no sofá rasgado e comecei a fazer contas. O subsídio de desemprego acabava dali a dois meses. O trabalho nas limpezas pagava mal e tarde. As contas da luz e da água estavam atrasadas. E ainda havia o empréstimo do carro velho que já nem andava.
Peguei no telemóvel e abri o WhatsApp. Havia mensagens do senhorio:
“Arianna, preciso da renda até sexta. Não posso esperar mais.”
Fechei os olhos e respirei fundo. Pensei em ligar ao Rui, mas sabia que era inútil. Ele já tinha outra família agora.
No dia seguinte, fui ao supermercado com os vinte euros da minha mãe. Passei pelos corredores cheios de promoções: “Leve 3 pague 2”, “Desconto imediato”… Mas mesmo assim tudo parecia caro demais. Comprei arroz, massa, uma bandeja de frango em promoção e um pacote de bolachas Maria para os miúdos.
Na caixa, a senhora olhou para mim com pena quando pedi para tirar o queijo porque não chegava para tudo.
— Tem dias difíceis, não é? — murmurou ela.
Assenti em silêncio.
Em casa, preparei um arroz de frango que estiquei com cenoura ralada e muito caldo. Os miúdos comeram tudo em silêncio. Só Tomás perguntou:
— Mãe, amanhã há sopa?
— Claro que sim — respondi, sem saber como.
À noite recebi uma mensagem da escola: “Leonor não trouxe lanche hoje. Por favor, verifique.” Senti uma vergonha tão grande que chorei baixinho na casa de banho para ninguém ouvir.
No fim-de-semana seguinte, a minha mãe apareceu sem avisar. Trouxe sacos do Pingo Doce cheios de comida e roupa usada dos netos mais velhos da minha irmã Catarina.
— Não podes continuar assim sozinha — disse ela enquanto arrumava as compras na despensa.
— Eu não quero ser um peso para ti — respondi.
Ela olhou-me nos olhos:
— Tu és minha filha. Nunca serás um peso. Mas tens de pedir ajuda quando precisas! Porque é que não vais falar com a assistente social? Ou então procura outro trabalho… qualquer coisa!
Senti-me revoltada. Como se pedir ajuda fosse admitir derrota. Mas talvez ela tivesse razão.
Na segunda-feira fui ao Centro Social da freguesia. Esperei duas horas numa sala cheia de mães como eu: olheiras fundas, crianças inquietas ao colo, olhares perdidos no chão.
Quando finalmente me chamaram, sentei-me à frente da Dona Graça.
— Arianna, já nos conhecemos… — disse ela com um sorriso triste. — Como posso ajudar?
Contei-lhe tudo: as dívidas, o medo de não conseguir pagar a renda, o cansaço de ser mãe e pai ao mesmo tempo.
Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:
— Vou inscrevê-la no cabaz alimentar e ver se conseguimos um apoio para pagar parte da renda este mês. E vou marcar-lhe uma entrevista para um curso profissionalizante. Pode ser que ajude…
Saí dali com um misto de esperança e vergonha. No caminho para casa pensei em tudo o que tinha perdido: a juventude despreocupada, os sonhos de estudar enfermagem, as noites sem preocupações financeiras.
À noite contei à minha mãe:
— Fui pedir ajuda à assistente social.
Ela sorriu pela primeira vez em muito tempo:
— Fizeste bem, filha. Ninguém consegue sozinho.
Mas mesmo assim senti o peso do fracasso nos ombros.
Os dias passaram devagar. A comida do cabaz ajudou a encher as lancheiras dos miúdos durante uma semana. O curso profissionalizante era só dali a dois meses — até lá tinha de aguentar como podia.
Uma noite ouvi Leonor chorar baixinho no quarto.
— O que foi, filha?
— Tenho vergonha… As outras meninas dizem que sou pobre…
Sentei-me ao lado dela na cama e abracei-a forte.
— Não és pobre porque tens pouco dinheiro. És rica porque tens uma família que te ama muito — disse-lhe, tentando acreditar também nisso.
Mas quando ela adormeceu no meu colo percebi que as palavras nem sempre chegam para alimentar uma criança.
No domingo seguinte houve reunião de família em casa da minha irmã Catarina. Todos falavam alto à volta da mesa farta: bacalhau com natas, arroz doce, vinho tinto barato mas bom. Senti inveja daquela normalidade.
A certa altura ouvi o meu cunhado Luís dizer baixinho à Catarina:
— A Arianna está sempre a pedir ajuda… Qualquer dia ninguém aguenta…
Fingi que não ouvi mas por dentro fiquei destruída.
No regresso a casa perguntei-me se algum dia conseguiria sair deste ciclo de dependência e vergonha.
Hoje escrevo esta história enquanto espero pelo resultado da entrevista do curso profissionalizante. Os miúdos dormem finalmente tranquilos depois de um jantar simples mas quente. A minha mãe ligou há pouco só para perguntar se estava tudo bem.
Às vezes pergunto-me: quantas mães vivem assim em silêncio? Quantas escondem as lágrimas dos filhos e sorriem para não os assustar? Será que algum dia vou conseguir dar-lhes tudo aquilo que merecem? E vocês… já sentiram este peso?